"Eu estou como o jogador de bola que não quer dizer para o treinador que está com dor para não ir para o banco... mas agora tem de ser", disse Lula da Silva. E tem de ser mesmo: o presidente do Brasil, 77 anos, é submetido esta sexta-feira, em Brasília, a uma inevitável operação à anca que o impedirá de trabalhar no Palácio do Planalto por quatro semanas e de viajar por mês e meio. Mas há uma controvérsia, explorada pela oposição, sobre quem substituirá o "jogador de bola" enquanto ele estiver no "banco": o vice-presidente, Geraldo Alckmin, ou a primeira-dama, Janja da Silva?.A revista Oeste, ligada aos eleitores de Jair Bolsonaro, publicou uma reportagem, de ampla difusão nas redes sociais, a especular que seria Janja e não Alckmin a representar o presidente. Na sequência, o deputado oposicionista Evair Melo, do PP, requereu mesmo a presença de três representantes do governo no parlamento para explicarem a situação..Entretanto, numa notícia intitulada "vice-presidente Janja" do site Crusoé, também conotado com a extrema-direita, o cientista político Bruno Soller sublinha que "não é permitido que ninguém que não esteja na linha de sucessão assuma a presidência, na ordem, vice-presidente, presidente da Câmara, presidente do Senado e presidente do Supremo Tribunal Federal". "Além de inconstitucional, a medida seria uma afronta ao vice-presidente Geraldo Alckmin e aos demais poderes", concluiu..A controvérsia aumentou depois do tema chegar à chamada "grande media" através de reportagem do jornal Folha de S. Paulo a sugerir "preocupação no governo" por Lula ter adiado para ontem, dia 28, uma viagem de ministros ao Rio Grande do Sul de forma a que Janja pudesse integrar a comitiva. O ministro da Secretaria de Comunicação Social, Paulo Pimenta, confirmou que, "por determinação do presidente", Janja vai "olhar de perto as ações do governo e até anunciar outras medidas para o Rio Grande do Sul", estado atingido por fortes cheias..Mas Lula apressou-se a desmentir que o adiamento da viagem se devesse à agenda da primeira-dama. "Nada disso procede. A viagem, que é dos ministros, foi adiada porque recebo na quarta-feira [dia 27] o governador Eduardo Leite para discutir o apoio ao estado e seria deselegante os ministros visitarem o estado com o governador gaúcho em Brasília"..O site Poder360, entretanto, revelou que foi Janja a indicada por Lula para resolver uma crise no Ministério da Igualdade Racial na última terça-feira, 26. A ministra Anielle Franco e a assessora dela que, durante o jogo de futebol entre São Paulo e Flamengo do domingo anterior, publicou nas redes sociais ofensas aos adeptos, supostamente elitistas, do clube paulista -- "torcida branca que não canta, descendente de europeu safade", escreveu - reuniram-se com Janja por seis horas. No final do encontro, Anielle pediu desculpas ao presidente do São Paulo e demitiu a assessora..Em paralelo à nítida influência prática de Janja, os maiores prejudicados com a última remodelação governamental foram Alckmin, que perdeu parte das suas atribuições como ministro do Comércio, Indústria e Serviços, e o seu partido, o PSB, cujo presidente, Carlos Siqueira, lamentou em entrevista ao DN não ter sido informado dessa remodelação..Sucessão à parte, Lula disse esperar que as dores que sente passem após a cirurgia. "Eu tenho um problema na cabeça do fémur. Faz tempo que eu tenho isso. Eu quero fazer a cirurgia porque eu não quero ficar com dor. Ninguém consegue trabalhar com dor o dia inteiro", contou Lula numa live semanal.."Eu sinto que estou com mau-humor com os companheiros. Quando eu coloco o pé no chão já dói e eu tenho que falar bom dia e às vezes eu não consigo, fica visível no meu rosto que eu estou irritado, que eu estou nervoso. Você vai ficando uma pessoa chata, incómoda. Dói de manhã, de dia, sentado, em pé, deitado. E não tem remédio, o remédio é operar"..A operação de Lula, no Hospital Sírio-Libanês, em Brasília, deve durar mais de duas horas e prevê anestesia geral e internamento até terça-feira, 3 de outubro. O médico pessoal do presidente, Roberto Kalil Filho, e a médica da presidência da República, Ana Helena Germoglio, vão acompanhar a cirurgia, conduzida pela equipa do hospital..Segundo o Planalto, Lula será submetido a uma artroplastia total da anca, no lado direito do corpo, para tratamento de uma artrose, caracterizada pelo desgaste da cartilagem que reveste a articulação, levando a um atrito ósseo e a uma inflamação. De acordo com os médicos de Lula, a única abordagem efetiva para essa condição é a cirurgia, que envolve a substituição da cabeça do fémur e do acetábulo por implantes..Depois de ter alta, Lula vai utilizar a residência oficial do presidente, o Palácio da Alvorada, em vez do Palácio do Planalto, para assuntos internos do Brasil. Na política externa, está impedido de viajar, um contratempo para quem visitou 19 países em oito meses, recorde só igualado pelo próprio, em 2007, primeiro ano do seu segundo mandato..Lula não é, naturalmente, o primeiro presidente obrigado a fazer uma pausa por questões de saúde. Para não ir mais longe, o antecessor Jair Bolsonaro parou por ser diagnosticado com covid-19, por ter realizado um implante dentário e por ter sido internado três vezes em decorrência da facada sofrida na campanha eleitoral de 2018..Presidente de 1902 a 1906, Rodrigues Alves seria eleito novamente em 1918 mas não assumiu por falecer antes, em virtude de uma parada cardíaca provocada, supostamente, pela gripe espanhola..O presidente Café Filho governou de agosto de 1954 a novembro de 1955, quando teve de abdicar por problemas de saúde - ele chegara à presidência em substituição de Getúlio Vargas, que se havia suicidado no exercício do poder, de quem era vice..Presidente durante a ditadura militar, Costa e Silva foi afastado após sofrer um derrame em 1969, terceiro ano do seu governo..O primeiro chefe de estado após 21 anos de ditadura, Tancredo Neves, não assumiu sequer o mandato por doença: morreu três meses depois de ser escolhido por um Colégio Eleitoral formado por Senado e Câmara..dnot@dn.pt