Queixas por racismo duplicaram, mas raramente dão condenação
A queixa contra Carlos Pereira, presidente do Marítimo, foi apresentada pela associação SOS Racismo em abril do ano passado, pelo que disse a uma entrevista a O Jogo : "Bruno de Carvalho era, dos três presidentes, aquele que não me conhecia bem, como é lógico, mas penso que hoje já me conhece o suficiente e - já conversámos sobre isso - para saber que o negócio, quando se faz, não é como o negócio do cigano: faz-se. Há uma verba, há compromissos que têm de ser assumidos."
A Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial (CICDR), que analisa estes processos, considerou a afirmação de Carlos Pereira "prática discriminatória negligente que consistiu em declarações proferidas publicamente que relacionam a comunidade cigana a comportamentos negativos e censuráveis fomentando estereótipos", aplicando-lhe uma coima de 278,50 euros.
É uma das duas condenações deste ano, se bem que no segundo processo aguarda-se a decisão judicial de um recurso do arguido sobre o valor que terá de pagar, 530 euros. A coima de Carlos Pereira "transitou em julgado", mas a Comissão não diz se foi efetivamente paga.
Uma ou duas é a média anual de condenações nos últimos anos, nunca mais de duas, sendo que, tanto em 2017 como em 2016, uma condenação foi em coima e outra em admoestação. Em 2015, ninguém foi condenado.
E, para já, a duplicação de queixas nos primeiros oito meses do ano (211) que se deveu à alteração da lei (Lei n.º 23/2017, de 23 agosto) não tem reflexos nas condenações.
Pedro Calado, o alto-comissário para as migrações que preside à Comissão, argumenta que uma das causas pode ser o facto de os processos de contraordenação deste ano ainda não terem sido analisados.
Entre a apresentação da queixa, em abril de 2017, e a decisão, em julho, passaram-se 15 meses. E a segunda sentença, que motivou o recurso, diz respeito a uma situação de 2016, um indivíduo que proferiu "expressões depreciativas em razão da pertença à nacionalidade brasileira do ofendido". Com a nova lei, a Comissão é obrigada a publicitar os casos de violação.
"É uma das poucas condenações por discriminação racial face às queixas que apresentamos, mais de 40 por ano", começa por dizer José Falcão, dirigente do SOS Racismo e com presença nas reuniões trimestrais da Comissão. No entanto, sublinha: "Não sabemos se foi paga, não temos essa certeza. Nunca nos dizem qual é o resultado concreto das queixas e se as condenações são concretizadas. Há poucas condenações e, mesmo essas, não sabemos se a sentença é cumprida."
O ACM justificou ao DN que não pode disponibilizar essa informação, nem sequer o nome das pessoas envolvidas, mesmo quando se tratam de casos públicos. O DN tentou, sem êxito, contactar Carlos Pereira.
José Falcão acrescenta que as queixas contra declarações públicas acabam por ser arquivadas, acusando o ACM de "inoperância e falta de independência". Justifica: "Existem poucas condenações porque não há vontade política. Os processos estão dependentes da Comissão, que depende do ACM, que distribui os processos pelos serviços, que não fazem nada. Os casos de racismo deviam ser criminalizados e os processos serem da responsabilidade do Ministério Público."
A nova lei permitiu a concentração de todas as fases dos processos de contraordenação no ACM, "por forma a agilizar os mecanismos de atuação e tornar mais célere e efetiva a aplicação da lei", diz a tutela.
As alterações vigoram desde 1 de de setembro de 2017 e a CICDR recebeu 270 queixas até 31 de agosto de 2018,"denúncias e participações consoante tenham sido apresentadas pelas próprias vítimas, por terceiros ou por outras entidades, 211 em 2018 e 59 nos últimos quatro meses de 2017, período que totalizou 179. Mas estas denúncias têm vindo a aumentar: 119 em 2016, 84 em 2015 e 60 em 2014.
Catarina Reis Oliveira, coordenadora do Relatório Estatísticas Anual, do Observatório das Migrações, justifica o número reduzido de condenações por falta de elementos de prova, ausência de respostas dos denunciantes a pedidos de informação, o recurso à mediação, além de que muitos casos têm sido encaminhados para outras entidades inspetivas, destacando-se a Autoridade para as Condições do Trabalho.
Em 2016, as queixas por discriminação nos media (35%) foram as mais frequentes, seguindo-se as existentes no trabalho (16%), pelas forças de segurança (9%), em estabelecimentos comerciais (7%) e na internet (6%). Os visados pelas atitudes racistas são em geral homens e ciganos (31.8%), o grupo étnico mais discriminado. Por nacionalidades, os brasileiros estão em primeiro lugar no número de ofensas, sendo os alvos em 12,6% das denúncias. As outras nacionalidades não chegam a atingir os 2% cada uma.
Nesta terça-feira, um relatório da Comissão Europeia contra o Racismo e a Intolerância critica, em Portugal, a discriminação dos ciganos e o comportamento das autoridades. As conclusões não são novidade para os dirigentes do SOS Racismo.
"Demonstra é que qualquer alteração legislativa que não vá no sentido da criminalização do racismo - o caminho para uma maior capacidade dissuasiva e uma melhor e efetiva proteção das vítimas - servirá apenas para reforçar o sentimento de impunidade que tem grassado na sociedade em geral e nas instituições em particular no que toca à expressão do racismo e à violência associada", referem em comunicado,
Argumentam que "o racismo não é nem pontual nem circunstancial, mas quotidiano e real na sociedade portuguesa". E exemplificam com casos no espaço público (Mercado de Benfica, Paragem da STCP, onde foi agredida a Nicol Quinaya no Porto, etc.), de violência policial já denunciados ao ACM (esquadras de Odivelas, Alfragide, Torre da Marinha, Ameixoeira, etc.), nos estabelecimentos prisionais (como em Vale de Judeus, denunciados no Relatório do Comité Europeu para a Prevenção da Tortura), no acesso a estabelecimentos comerciais ou de diversão noturna (Urban Beach, Lux Frágil, Place, Swang, etc.), as declarações racistas de figuras públicas e os despejos de populações ciganas e negras com recurso à violência policial.