Que fará o congolês Faustin Linyekula com esta cidade?

É o Artista na Cidade 2016: até ao final do ano assinará muitas das peças que sobem aos palcos da capital. É a dançar e a fazer dançar que procura "dar sentido" à história do Congo, que é também a sua
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Faustin Linyekula já foi natural do Zaire, do Congo Belga, do Estado Independente do Congo. É natural da República Democrática do Congo. Não precisava de ter pisado outro solo para o ser, mas estava exilado em Nairobi, Quénia, quando, em 1997, soube que o país onde nascera já não era o Zaire. O bailarino, coreógrafo e encenador conta a história e põe a plateia que tem à frente a rir. Riem-se por lhe terem exigido um certificado de nacionalidade congolesa, que ele não tinha porque havia nascido no Zaire, e pelos 200 dólares que lhe custou a nova nacionalidade.

Linyekula é o Artista na Cidade 2016. A plateia que tinha ontem à sua frente assistia à apresentação oficial desta terceira edição da bienal que já recebeu Anne Teresa Keersmaeker (2012) e Tim Etchells (2014). A cidade é Lisboa e o artista veio de Kisangani, nordeste do Congo. São mais de sete mil quilómetros de distância. Todavia, garante, "não é uma cidade estrangeira". Por várias razões. Entre elas aquele avião abandonado no aeroporto da Portela desde 1991, que ostentava uma bandeira do Zaire, e que o bailarino avistou ao aterrar em Lisboa. Fizera parte da frota do ditador Mobutu (cujo regime vigorou entre 1965 e 1997). Estávamos em 2002 e aquelas eram "as primeiras férias" de Faustin. Por tudo isto, e mais que dissera, Faustin, resoluto, lançava: "Estou em casa."

Dançar na Cova da Moura

Já trouxe a esta cidade nada estrangeira vários trabalhos, criados no seu projeto de dança e teatro baseado em Kisangani, o Studios Kabako. A última delas, em 2013, durante o festival Alkantara, foi Le Cargo. Ora, se querem conhecer o artista vão agora vê-lo dançar Le Cargo no Moinho da Juventude, Cova da Moura, no dia 24. Vejam e, garante ele, hão de ver o Congo e os tetravós de Faustin, que este traz no seu corpo.

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À exceção de ter nascido em 1974 naquela pequena cidade congolesa que é Ubundo, não parece haver muitos acasos na vida do coreógrafo. É um daqueles homens que procuram o seu destino. Destino este que esteve sempre no Congo, como Faustin contava ontem na mesa que partilhava com a vereadora da Cultura da Câmara Municipal de Lisboa (CML) - instituição que, com a EGEAC, promove a bienal - Catarina Vaz Pinto, a secretária de Estado da Cultura, Isabel Botelho Leal, e o diretor do festival Alkantara, Thomas Walgrave.

"Tenho de voltar ao Congo"

"Para lá das questões da forma [da criação artística], aquilo com que primeiramente me preocupo é contar histórias. Nos últimos 15 anos tenho estado obcecado com a tentativa de dar sentido à minha própria história." O seu motor é este: que história é a do seu país e que história é a sua por ser de lá?

"Ao estar fora percebi que as histórias que me põem em movimento não são do exílio. [Percebi:] Se quero ser verdadeiro comigo tenho de voltar ao Congo." Foi o que fez. Mesmo que pudesse ser um coreógrafo bem estabelecido na Europa.

Voltou ao seu país. Lá fundou o Studios Kabako. Lá dançou as guerras que o Congo atravessou, dançou e fez dançar a fome e a miséria, dançou até a morte do amigo que deu nome ao projeto - Kabako -, que em pleno século XX morreu de peste naquele país. Dançou tudo isso, primeiro em Kinshasa e depois de volta a Kisangani, onde hoje vive. "Viver lá é um ato de resistência. Resistir ao fatalismo." Em Lubunga, a sul da sua cidade, onde não há água canalizada, o seu Studios Kabako trabalha para criar este ano um centro piloto de tratamento de água que seja ainda um centro cultural.

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O Congo já está em Lisboa. E, como as suas avós, que o levaram "a vários rituais tradicionais" por acreditarem "que nenhum conhecimento é completo se não passar pelo corpo", é do corpo que Faustin parte e a ele regressa. O primeiro desses corpos é o de Miguel Ramalho, bailarino da Companhia Nacional de Bailado que, no dia 14, no Teatro Camões, dançará Portrait Séries: I Solo. Miguel esteve no Congo. Dançou ao ar livre, como se dança no Studios Kabako.

"Com o tempo percebi que se calhar a única forma de ser universal é sendo muito local" diz Faustin. E percebe-se porquê quando o ouvimos falar do Congo, de África. "Há muitas pessoas no Ocidente que vivem com esta ilusão: é problema deles. Não é. Estamos neste barco juntos. O que está a acontecer com os migrantes a entrarem na Europa é a ilustração perfeita."

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De resto, quase basta dizer que Faustin andará por cá até dezembro. Dançará em todas as grandes casas culturais lisboetas. Trabalhará com finalistas da Escola de Dança de Teatro e Cinema e irá pôr os atores do Teatro Nacional D. Maria II a declamar. Com artistas da cidade dançará por Lisboa na altura dos Santos Populares. Trará o seu reportório. Como more more more... future, em novembro na Fundação Gulbenkian. Como Sans-titre, a criação do alemão Raimund Hoghe, que dançou com ele, e que estará em novembro no Teatro São Luiz; ou Statue of Loss/ Triptyque Sans Titre, dias depois, no Centro Cultural de Belém. Eis o Congo em Lisboa.

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