Que cheiro
O inferno não é chamas, nem fagulhas, nem brasas, é pessoas sem cheiro numa cidade sem cheiro a lerem livros sem cheiro na sala sem cheiro de uma casa sem cheiro. Há casas que não têm cheiro, já fui a uma ou duas, vai-se uma vez e não tem cheiro, vai-se outras e confirma-se que não, que aquilo não cheira a nada, são um rendering sonoro e visual mas sem vida, tudo clean olfativamente cheirando. Nessas casas de almofadas sem cheiro de gente nem cheiro nenhum ainda são pessoas quem lá vive?
"Distinguem-se designadamente pelo cheiro", já dizia Ruy Belo sobre as casas, no Oh as casas as casas as casas, as que têm cheiro. Há casas de pessoas que não se conhecem que cheiram parecido e há casas que podiam cheirar igual mas cheiram diferente - a casa dos vizinhos da frente, as casas da mesma família, as casas sucessivas das mesmas pessoas, tão perto tão longe. Há casas para todos os cheiros, mas só há um cheiro para cada casa. Umas mais a pessoa, outras mais a comida, outras mais a móveis, outras mais a cidade, outras mais a materiais, outras mais a disfarce olfativo, mas cada uma com seu cheiro.
Não conseguir cheirar deve ser a maior pena em vida, como na semana passada, que andei constipado, andei e ainda ando, mas não vou falar disso aqui por causa da regra do cancro. A regra do cancro é uma regra que instituí lá em casa, mas ninguém concorda e por isso ainda está em vacatio legis, que é como se diz em juridiquês está de férias (vacatio, vacation, vacaciones, vacances, vacanças, vacay). A regra é que só merecem tempo de antena e tempo de preocupação doenças de gravidade igual ou superior ao cancro, quanto ao resto, boa tarde, vai passar. É que eu, ao contrário de muita gente, já fui hipocondríaco e paciente do Dr. Google, e sei do que falo quando falo de doenças que não existem.
Há doenças horríveis que não são graves, é certo. Com trimetilaminúria, em que o metabolismo processa mal a trimetilamina (substância que está em vários alimentos) e as pessoas ficam a cheirar a peixe. Apesar de não ter mais efeitos do que esse, a devastação psicológica é grande, o odor sai pelo suor e pela saliva, a peixaria do mercado de Alvalade no final da manhã para todo o lado onde vão.
Passei a estar atento à campanha de Beto O'Rourke, mais uma que fico a dever ao meu homógrafo amigo João G., representante democrata do Texas, que desafia agora nas midterms o incumbente Ted Cruz para o Senado. Beto aparece sempre com a camisa manchada de suor. Políticos suados pode ser bom, pode ser mau. Mas normalmente é bom. A Globo em 1989 ajudou à eleição de Collor de Mello no debate contra Lula, espalhando glicerina na cara de Collor para parecer menos lavadinho, mais real, mais do povo, do povo que sua porque não nasceu rico e tem de trabalhar (longe o tempo em que a preocupação nas presidenciais brasileiras era esta). Blair também passou pelo mesmo em 2000, a camisa encharcada debaixo dos braços, com a mestria dos spinners do Labour a fingirem querer controlar o dano do suor - alegadamente com medo de que fosse interpretado como não aguentando a pressão - mas na verdade esfregando as mãos pela imagem de realidade, a fuga ao boneco falante e sorridente, que tudo aquilo passava. Há o debate entre Nixon e Kennedy em 1960, e aí o suor prejudicou Nixon, suado, fraco e vindo do hospital, perante o verdejante JFK. Vals exagerou e há fotos em que parece o mister T-shirt molhada. Mas Beto suado, sobretudo no peito, uma autoestrada molhada, é um íman. Há quem goste, quem não goste, e o debate sobre as camisas interiores está de volta, mas é o candidato ao Senado com mais tempo de antena.
Não sei a que cheira Beto, se é que cheira - pode haver suor que não cheira? Se calhar na cidade dele há disso. E sabemos a que cheiram as cidades? Andamos para aí a instagramar sem ver, de um lado para o outro, cidades espertas, mentes despertas, mobilidade suave, intermodalidade, wazados, continue pela direita, mas sempre de nariz adormecido, ninguém fala do cheiro das coisas. Sabemos a que cheira a nossa rua? Como vai mudando o cheiro, os cheiros que voltam, os que vão, com a chuva, o vento norte. Não respiramos sem cheirar, mas parece que sim.
Falta a carta olfativa de Lisboa, a paisagem de cheiros, a smellscape da grande alface. E o diabo é quando ao cheiro da cidade se junta o cheiro das pessoas, de certas pessoas. Uma amiga um dia confessou-me que quando gosta do cheiro de uma pessoa na rua é capaz de a seguir por mais uns metros, mais uns minutos, pisteira cidade adentro. Será que no fim desse cheiro está o paraíso? Ou o inferno?