que as maiores perguntas, como os grandes amores, raramente são idílicas

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Sábado, 2 de Julho

Releio a coluna de Robin Lane Fox no Financial Times, uma dessas preciosidades para que o Miguel me chama a atenção, e, antes mesmo de pensar no que ele diz sobre a vida no campo, rio-me com as suas desventuras românticas.

Educado entre o Eton e o Magdalen, à medida de um menino-bem inglês, Lane Fox tornou-se primeiro um dos grandes especialistas mundiais em História Antiga e depois um inusitado colunista de jardinagem e vida campestre. Há anos que vive no West Oxfordshire, no meio das Costwolds, e é partir de lá que intervala a actividade de professor em Oxford com a de colaborador do suplemento House & Home.

Gosto de dizer que somos colegas, apesar de ele ser um dos intelectuais públicos mais respeitados de Inglaterra e eu um rapaz dos Açores navegando entre indústrias em agonia.

Entretanto, num dos últimos textos de Robin, reflexão sobre um certo movimento ocidental de regresso ao campo (que talvez só exista nas cabeças de nós os dois e uns quantos lunáticos), e onde se cita de Hardy a Henry James e de Chaucer a Wordsworth e John Clare, a história não era, na verdade, sobre nada disso. Era sobre os esforços do autor para fixar uma mulher ao seu lado - no campo.

Quer dizer, também era sobre o medo de, qualquer dia, os cafés da região começarem a vender cappuccinos. Seria sinal de que os urbanos se tinham instalado, e Robin Lane Fox quer o campo para si.

Mas, no fundo, era a propósito do infortúnio amoroso. Daquela italiana que se lhe juntou um dia no Oxfordshire, viveu bucolicamente uns meses e, chegado Setembro, proclamou: "Só os animais vivem no campo." Daquela parisiense que o acompanhou uma semana por la nature inglesa e que, quando ele lhe perguntou se quereria considerar viver noutro sítio que não o Septième Arrondissement, suspirou: "E porque não? Tenho sempre o Sixième..."

É claro: tudo isto contado com a dose de auto-ironia que só se permitem os homens inteligentes e (repito, "e") que prevaleceram. Por isso, leio, dobro o jornal e chego-me para trás, com o sorriso de bonomia de quem - bem vistas as coisas - também tentou até prevalecer.

"E se afinal formos nós, e não elas, os primeiros a desejar a cidade?", questiono-me. Mas logo me distraio com outra coisa, que as maiores perguntas, como os grandes amores, raramente são idílicas.
Um dia destes escrevo a Robin Fox. Talvez lhe aproveite saber que a venda do Américo já tem cappuccinos e ainda não houve espiga.

Segunda-feira, 4 de Julho

O Melville é o meu cão, o meu primeiro amor interespecífico, mas a Jasmim é o melhor cão que conheço. Troca uma refeição por uma festa, comunica com suspiros de diferentes entoações e, se a deixamos à solta, fica ali a brincar na relva, sem alguma vez se lembrar de que talvez pudesse ir comer galinhas ao quintal do vizinho.

O Luciano costuma dizer que, quando temos o nosso primeiro border collie, já não queremos outro cão. Talvez. Mas a Jasmim não é só uma border collie. A Jasmim é a Jasmim: a melhor personalidade das quatro que habitam esta casa e o bicho mais esperto das redondezas - e não apenas quando se põe a falar com a Catarina, tentando imitar os tons das palavras que ouve.

Infelizmente, eu reli A Insustentável Leveza do Ser há tempo de menos para ficar indiferente a um cão que coxeia. A maneira como Karenine adoece e finalmente morre, antecipando a morte dos donos e o fim de tudo, ficou comigo. De modo que, aqui há uns dias, quando a Jasmim começou a coxear da mão esquerda, ergui o cenho. E, ao fim de 48 horas, mergulhei na via sacra do costume: perguntei casualmente ao Chico, liguei ao Henrique e fui ao Luciano.

Nada de especial: uma luxaçãozita num cotovelo, que talvez até tivesse passado espontaneamente - como haviam dito o Chico e o Henrique - se eu houvesse esperado. Mas voltou a perseguir-me aquela vertigem de Thomas Mann ao olhar o seu Bashan: entre as injustiças deste mundo, os cães viverem tão menos do que nós não é a menor.

Quinta-feira, 7 de Julho

Na terça-feira, o avião que me trazia de São Miguel atrasou, devido ao nevoeiro, e só cheguei a casa dos Rodrigues depois das dez da noite. Esperavam-me eles, os Barcelos e a Catarina, com travessas de lapas prontas a grelhar.

Ontem juntámo-nos na venda da Telma e do Américo, todos os dos Dois Caminhos e mais uma série de amigos, para a meia-final do Europeu. Ficámos a comer, a beber e a rir até tarde.

É fácil um homem desgraçar-se numa terra assim, pelo que amanhã seguimos rumo a uma recatada fajã de São Jorge, para férias. Veremos lá a final, com a S. e o R.

Mas, não obstante todos os votos de comedimento, a festa continuará. A casa de um homem também é onde estão os seus amigos, e a vida é demasiado curta para não se celebrar.

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