Que aflição leva seis milhões de alemães a votar pelo racismo?

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Andei louco de entusiasmo quando chegou a Portugal o canal Historia. Foi em 1996. Sempre que vencia em casa a guerra pela posse do telecomando da TV, pimba, mudava para lá...

A primeira vez que o vi estava a dar um documentário sobre uma das grandes batalhas da Segunda Guerra Mundial.

A segunda vez que o vi passava um filme sobre os campos de concentração nazi.

A terceira vez que o vi transmitiam um trabalho sobre os últimos dias de Hitler.

A quarta vez que o vi recordavam a derrota alemã no Leste.

A quinta vez que o vi abordava-se a Noite de Cristal, a perseguição aos judeus e como muitos países europeus lhes recusaram asilo.

À sexta vez fazia-se um perfil do ministro da propaganda nazi, Joseph Goebbels...

...À décima vez achei que chegava de tanto nazismo na minha vida e mudei de canal.

Atendendo a que acabou de receber mais de 5,8 milhões de votos alemães um partido liderado por um senhor que acha que os seus compatriotas devem ter orgulho no que os soldados nazis fizeram parece que, pelo contrário, o que faz falta é mais informação, maior detalhe e insistente reforço da exposição massificada dos horrores desse tempo e da desumanidade dessa ideologia, que se fundamentava, toda ela, na convicção da superioridade de uma raça humana sobre todas as outras e intitulava, orgulhosa, o seu braço político de "partido racista".

Glorificar os soldados nazis implica algo mais do que registar as brilhantes manobras militares de blitzkrieg ou reconher o génio tático de Erwin Rommel.

Glorificar os soldados nazis implica, no mínimo, ser benevolente para com o genocídio organizado de judeus, ciganos, comunistas, homossexuais, testemunhas de Jeová, polacos, deficientes físicos e mentais e, ainda, prisioneiros de guerra soviéticos, tudo operações de guerra com intensa organização e eficiente execução militar.

Somados 53 anos de vida e de conhecimento pensava que a questão do nazismo ou das ideias que o suportaram, tirando a fé de uns quantos milhares de patetas embrutecidos, microscopicamente disseminados por múltiplos países, não tinha pés para andar na Europa que passou pelos horrores do último conflito mundial... Fui tonto.

Na verdade, 12,6% dos alemães quiseram no domingo eleger deputados do grupo liderado por Alexander Gauland - o líder do AfD que pede um olhar simpático para com os militares alemães das duas guerras mundiais.

Ele não defende a superioridade da raça ariana sobre as outras mas diz que a Alemanha não deve receber refugiados sírios porque, cito, "o islão não faz parte da cultura alemã".

Ao mesmo tempo, vários dirigentes do partido lançam tiradas em comícios contra os judeus, contra os "não alemães" nascidos na Alemanha, contra o monumento ao Holocausto em Berlim, contra os estrangeiros em geral e contra a imigração "não qualificada" em particular.

Embora alguns destes dirigentes mais afoitos na sua radicalidade discursiva tenham sido criticados dentro do seu próprio partido, embora haja muitas divisões e muita confusão (e algumas pessoas que lá estão não são, de facto, de extrema direita) o núcleo central deste discurso, racista e xenófobo, foi a base da propaganda eleitoral da AfD, temperado com carradas de críticas ao euro e à União Europeia "para regatar a Alemanha de volta", mais a pacóvia e já corriqueira, neste tipo de partidos, recusa de reconhecimento da existência de alterações climáticas provocadas pela atividade humana.

Há, portanto, uma aflição na vida de milhões de alemães, certamente conscientes dos horrores nazis, que os leva a não ter medo de apoiar politicamente gente que discursa daquela forma, demasiado próxima da família de ideias que alimentaram o ódio que deu balanço à conquista do poder por Adolfo Hitler, cozinhado pelo ressentimento e desejo de vingança da Alemanha de 1930, morta de fome e estupidamente humilhada pelos países vitoriosos da grande guerra.

Acontece, porém, que a Alemanha de 2017 não é uma Alemanha em risco de sobrevivência, como acontecia em 1930. Pelo contrário, a Alemanha de hoje é uma Alemanha dominante na União Europeia, é uma economia fortíssima, é um país de topo na ordem atual do mundo.

O que leva quase seis milhões de alemães de um estado federado riquissimo a votarem num discurso político com óbvias parecenças com aquele que levou, na Alemanha pobre de1933, os eleitores a escolherem Adolfo Hitler para chanceler? Que aflição leva tantos alemães de hoje a votarem desta maneira?

Poderemos dizer que essa aflição tem um nome: "imigração"? Que é esse mesmo nome que justifica a coexistência do brexit inglês, da Frente Nacional em França, dos regimes que governam a Polónia e a Hungria?

Essa é a explicação fácil. Antes da imigração ser problema comum a tantos países europeus houve um outro processo que os levou até esse ponto. Foi um processo longo de desagregação da sociedade europeia, construído em cima de uma União feita de cima para baixo: corrupção política; escândalos financeiros; fortunas incomensuráveis; falências dramáticas; fraudes; manipulação da democracia; instrumentalização da justiça; degradação, nos últimos 10 anos, das condições de vida dos mais pobres; desemprego; precariedade laboral; desigualdades; indiferença pela soberania dos povos; militarismo neocolonialista e deliberada ocultação e desprezo pelas experiências progressistas da história da humanidade do século XX.

Agora, no Canal Historia, quando lá passo, só vejo leilões de velharias. Talvez devessem voltar a passar os tais documentários sobre o nazismo...

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