Uma guerra são sempre, pelo menos, duas guerras. E vista do lado de cá, não sabemos ao certo como é que a guerra está a ser vivida e contada do lado de lá, onde a ousadia do escrutínio é uma aventura reprimida. Perguntado na rua, talvez o russo comum responda com o ditado antigo que ironiza o fatalismo histórico do seu povo: "Vamos menos mal: pior do que no ano passado, mas definitivamente melhor do que no ano que vem"..Ensina outro provérbio russo que "voltar atrás é melhor do que perder-se no caminho". Mas Putin, que não quer perder a face diante dos seus, já começou a perder esta guerra: Tudo lhe corre mal, não acerta uma. Ordenou aos seus generais que travassem a expansão da NATO, e vê esta agora, mais unida que antes, instalar-se nos 1.300 quilómetros da sua fronteira com a Finlândia, crescendo em território e em mais 15 milhões de habitantes, além de transformar o Báltico num mar interior da Aliança Atlântica.."Para um cachorro louco, sete milhas não são um desvio". Mais do que uma desculpa para invadir a Ucrânia, o argumento de Putin sobre a expansão e a ameaça da NATO é um eufemismo. O que o Kremlin teme é a União Europeia (UE), o seu modelo de integração e o primado do Direito, os seus valores e modo de vida, a sua liberdade e, sobretudo, o seu exemplo - terrível, segundo Putin-, que todos querem seguir no antigo espaço soviético. Não foi por acaso que, há quase 10 anos, o detonar da revolta de Maidan (a Praça da Independência, em Kiev) tenha sido o Acordo de Associação com a UE que o primeiro-ministro pró-Rússia da Ucrânia, Viktor Yanukovych, se recusou a assinar sob pressão de Moscovo. Os manifestantes exigiam, então, maior integração europeia, além de providências contra a corrupção no governo e eventuais sanções por parte do Kremlin. Ora, se algo vai acelerar agora, é exatamente o que Putin queria evitar em 2014 com a secessão de Donbass e a anexação da Crimeia, ou seja, a entrada da Ucrânia na UE. Afinal, são duas em uma, as derrotas políticas de Putin. A primeira, contra a NATO, praticamente concluída e cada vez mais evidente. E a segunda, contra a UE, ainda em andamento. Ambas as organizações, por vezes dissonantes, vão sair mais fortes na sua coesão interna e complementaridade. As diferentes necessidades de cada um dos membros destas organizações em gás e petróleo podem ser ainda a causa de algumas hesitações e divergências, mas Putin também está a falhar na sua estratégia de divisão, apostando agora tudo no prolongamento da guerra, pelo menos até ao próximo inverno, para endurecer as condições de vida dos europeus..DestaquedestaqueEm breve, ainda que à boca calada, de Putin dirão os russos que "não vale um groch (ervilha), mas parece um rublo"..A maior e mais amarga derrota é a que Putin está a sofrer em território ucraniano. O primeiro exército na Europa e o segundo no mundo é um espanto de incompetência. Perdeu a batalha de Kiev, agora está a perder a de Kharkiv, mal consegue avançar em Donbas, e só lhe resta o recurso terrorista ao fogo de artilharia pesada, o instrumento mais criminoso e errático de um exército, especialmente quando lhe escasseiam, como parece ser o caso, armas digitais de precisão. Putin sairá desta guerra com um exército diminuído e, pior que isso, desacreditado, incapaz de repetir, a breve prazo, a ousadia de nova agressão. Por estes dias, embora utilize a mesma linguagem que precedeu a invasão da Ucrânia para ameaçar a Suécia e a Finlândia, as medidas técnico-militares que Putin agora anuncia não têm crédito dissuasor. O máximo que ele pode esperar, se sobreviver, é presidir uma potência nuclear solitária como a Coreia do Norte, mas em grande medida transformada em pária da comunidade internacional e à mercê dos interesses de Pequim. Em breve, ainda que à boca calada, dele dirão os russos que "não vale um groch (ervilha), mas parece um rublo"..Jornalista