Quatro paisagens dispersas e um universo compacto

Recital de Mitsuko Uchida na Gulbenkian superou expectativas já de si elevadas
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"O que temos andado a perder!..." Podia bem ser um desabafo dito após o recital de domingo de Mitsuko Uchida na Fundação Gulbenkian. Porque fôra apenas a primeira vez que víramos a pianista tocar a solo em Lisboa; e porque foi um recital de excecional qualidade.

De tal modo que arriscamos dizer que poderia ficar como exemplo lídimo do que é a largueza de concepção intelectual transmutada em arte dos sons, colocando Mitsuko na linha mais pura do 'Tonkünstler' romântico germânico.

Na primeira parte, o 2.º caderno de Improvisos (D935) de Schubert encontrou em Mitsuko uma intérprete ideal - ela é, aliás, uma das grandes schubertianas da atualidade -, logo desde o gesto arpejado de abertura do n.º 1, brusco e enérgico. A (cerca de) meia hora seguinte foi um desvelar de recursos técnicos apuradamente utilizados "para maior glória" da poética das peças. Houve, é certo, aqui e ali, um tudo-nada de pedal a mais (dentro de uma conceção que otimiza o seu uso movendo-se preferencialmente no limite); houve um ou outro percalço técnico (nomeadamente nos nos. 3 e 4); e houve ainda, ocasionalmente, uma ressonância metálica perceptível q.b. para ser desagradável no Steinway "adaptado" que Mitsuko trouxe.

Mas houve sobretudo a capacidade de pintar em cada Improviso um quadro diferenciado, por meio de sempre subtis (subtilíssimas!) alterações da articulação e do 'toucher', enquadrados ambos pelo uso dos pedais, por uma cabal "caracterização" dinâmica das secções e pelo realce tímbrico na condução vocal.

Na segunda parte, as 'Variações Diabelli', de Beethoven, foram um portento. Por paradoxal que possa parecer numa obra na forma-variação, não foi a variedade, mas antes a unidade o que mais impressionou na interpretação de Mitsuko das 'Diabelli'. Houve variedade, houve uma imensa variedade, que penetrou até ao âmago de cada uma das 33 variações (Mitsuko quase infundindo uma personalidade distintiva a cada), mas a impressão que se foi desenhando e por fim impondo foi a de uma imensa unidade, fruto de um trabalho que nós só podemos imaginar de introspeção, de reflexão sobre o "ser" último das 'Diabelli'. Aí residirá a origem da evidente unidade de estilo, do claro entendimento estrutural, da marcada personalidade sonora e do fértil conteúdo espiritual exsudados na magnífica interpretação de Mitsuko.

E tal como já no Schubert da primeira parte, foi evidente em vários momentos o profundo entendimento (leia-se: assimilação) que a pianista tem do estilo tardio de Beethoven (falar de "tardio" em Schubert... digamos antes 'estilo último').

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