Quatro anos à espera e uma consulta desmarcada

Greve dos médicos apanhou de surpresa alguns doentes nos hospitais do centro e norte do país. Alguns que estava à espera de consultas de especialidade há vários anos. A sul os doentes tiveram mais sorte.
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Elvira pousa a carteira no parapeito de uma janela, à entrada da Consulta Externa do Centro Hospitalar de Leiria, e telefona ao filho: "vê tu bem que não tive consulta!". Não sabia da greve dos médicos. Quando chegou, às 9h30, vinda de Parceiros, nos arredores da cidade, seguiu todos os procedimentos habituais: integrou a fila para a máquina das senhas, cujo número haveria de lhe permitir a consulta na especialidade de otorrino, marcada para as 10. "Eles dizem na carta para vir 20 minutos mais cedo, eu até vim meia hora", conta ao DN, enquanto procura o envelope com a prova dessa convocatória. Junto à folha A4 tem agora a senha de presença na consulta que não teve. "Sabe o que me custa? Estive quatro anos à espera de uma consulta. Quando finalmente aqui vim, no ano passado, o médico pediu-me exames. Era para os ter mostrado numa consulta em janeiro deste ano, mas uns dias antes recebi uma carta a desmarcar. Marcaram-me para hoje. E vou daqui na mesma, sem saber quando tenho consulta, afinal", lamentava-se Elvira, ao mesmo tempo que se queixa de estar "quase surda".

Os transtornos da greve dos médicos ecoavam amiúde naquele corredor até à porta da rua, mas Elvira quase não os ouvia. Estava ainda a matutar nas palavras do filho, ao telefone, que a aconselhava a escrever no livro de reclamações. Foi o que fez Eduardo Botas, natural da Praia do Pedrógão, a 32 km dali.

Quando o DN o encontrou, ainda não estava refeito do nervosismo que tomou conta dele, ao perceber que, depois de uma hora de espera, afinal o médico não estava e os testes marcados na consulta de imunoalergologia seriam adiados, não se sabe para quando. "Eu não culpo o profissional. Ele tem todo o direito de se indignar e de fazer greve. Para mim a responsabilidade é do Hospital, que podia pelo menos avisar as pessoas, quando chegam". E foi isso que deixou escrito no livro amarelo. Aquela foi uma das últimas especialidades a abrir portas aos utentes no Hospital de Leiria, e que é assegurada apenas por um médico.

Eduardo cruzou-se nos corredores com Sandra Ferreira, delegada de informação médica, que naquele dia não teve sorte nos contactos. "Já sabia que havia greve, mas mesmo assim vim. Quando aqui cheguei percebi que, por exemplo, na Ortopedia não está ninguém, na Medicina Interna estão apenas dois médicos, na Pneumologia também estão dois (habitualmente são cinco) e na endocrinologia também só está um, dos três", conta ao DN, antes de ligar ao chefe à procura de orientações.

Afinal, era uma médica - na endocrinologia, como relata uma freira, que acompanhada uma jovem refugiada. Já na Oftalmologia pediátrica, a pequena Mariana foi uma das muitas crianças que na manhã do primeiro dia de greve ficou sem consulta. A mãe, Méssia Gonçalves, recebeu uma carta no dia 17 de abril que a convocava para uma consulta, "supostamente pedida pela médica de família". Como saiu a correr, não teve tempo de ligar a tv nem ouviu notícias. Só quando chegou ao Hospital e estranhou a demora na sala de espera, é que soube da greve.

Nos hospitais de Pombal e Alcobaça (integrados no Centro Hospitalar de Leiria) a greve também fez estragos. O primeiro fica paredes-meias com o Centro de Saúde de Pombal, dividido entre duas Unidades de Saúde Familiar: USF de São Martinho e USF Marquês de Pombal. Ali, as consequências da greve nas consultas ao médico de família foram acauteladas. À entrada, um pré-aviso de greve era visível. Dos sete médicos da maior unidade (São Martinho), apenas dois fizeram greve. As consultas foram remarcadas para dias depois.

São João a meio gás

"Hoje há greve dos médicos", podia ler-se ontem, num cartaz informativo, nas consultas externas do Hospital São João. A informação de greve serviu como alerta para os utentes, que tinham consulta naquela unidade hospitalar do Porto. Muitos foram avisados, anteontem, do cancelamento das consultas para evitar uma deslocação necessária, mas nem todos receberam essa informação.

"Como não nos ligaram, vim na mesma acompanhar a minha mulher. Tivemos sorte que a consulta não foi cancelada, mas estavam aqui pessoas que vieram de longe, como Mirandela, e foram embora sem serem vistos", contou ao DN Altino Cardoso. Segundo Hermínia Teixeira, do Sindicato Independente dos Médicos, a adesão à greve, no decorrer da manhã, fixou-se entre os 70 e os 80 por cento, nas consultas. Já no que se refere ao bloco central de cirurgias, das 11 salas do São João, apenas uma esteve em funcionamento.

Os constrangimentos também se fizeram sentir nas urgências, onde o tempo de espera foi superior ao "normal". "A minha mãe deu entrada às 9h. São 14h e ainda não foi atendida. Até pensei que fosse mais rápido porque veio do lar de idosos, onde se sentiu mal", contou Rosalina Bessa. O mesmo sucedeu com Patrícia Fonseca, cujo marido esteve "várias horas à espera de ser atendido". "Foi tudo muito demorado e mesmo depois de atendido, esteve uma hora para lhe passarem uma receita", contou.

Ao DN, Hermínia Teixeira sublinhou que os constrangimentos foram sentidos em todos os hospitais do Grande Porto. "No Santo António, das 25 salas do bloco, apenas 6 estiveram a funcionar", referiu. Segundo aquela responsável, o mesmo se passou no Hospital Pedro Hispano, em Matosinhos, onde apenas 2 das 9 salas estiveram a operar. Vários centros de saúde foram também afetados pela greve, sendo que a USF Maresia (Leça) encerrou durante a manhã por registar "100 por cento de adesão".

"A adesão é bem maior do que a registada na última greve, em 2016. A explicação é simples: têm-se agravado as condições de trabalho", justificou Hermínia Teixeira. A médica referiu ainda que os médicos acalentaram "esperança de melhoria no início da legislatura de António Costa". "Percebemos, entretanto, que tínhamos de endurecer a luta. Com esta greve de três dias, esperamos que haja finalmente vontade por parte do ministro da saúde em sentar-se para conversar", afirmou. Hermínia Teixeira referiu ainda que "esta greve não é uma luta apenas pelos médicos, mas também pelos utentes". "Não podemos aceitar que, por exemplo, no Hospital São João se esperem 570 dias por uma consulta de pneumologia", concluiu.

Quando doentes chegaram ao posto já o médico de Barbacena lá estava

José Manuel Ramalho sabia que havia greve dos médicos e entrou no posto de Barbacena - extensão do Centro de Saúde Elvas - sem a certeza de que iria ter a consulta que havia marcado há um mês. É diabético, já sofreu três AVC´s e aos 70 anos precisa de rigoroso acompanhamento. Mas, afinal, o clínico que presta serviço na aldeia já estava no gabinete. Chegou até mais cedo do que o habitual para passar receitas. Ou melhor, tentou, porque o sistema informático não estava a permitir

Na sala de espera meia dúzia de utentes, todos idosos, aguardavam vez com a garantia de que ninguém ficaria sem consulta. José Manuel Ramalho ia mostrar umas análises feitas há dias. "É rotina, mas ainda bem que o médico não fez greve, se não tinha que esperar mais uns dias para conhecer os resultados e na minha situação pode ser complicado", comentava ao DN, sem poupar elogios ao clínico.

"Temos sorte de ter aqui o doutor Gaspar Magarreiro. Está sempre disponível, é muito humano e atencioso com as pessoas. Veja que nem fez greve, é impecável", congratulava-se este antigo ciclista que antes dos 40 anos se viu forçado a deixar a bicicleta por problemas cardíacos. Os outros pacientes subscrevem os elogios, no momento em que o médico sai do gabinete e vai para traz do balcão dando uma "mãozinha" nos serviços administrativos que ainda estão fechados.

Faltam uns 15 minutos para a dez da manhã, mas como há utentes que apenas estão ali para receberem as receitas é Gaspar Magarreiro que as entrega em mão. "Hoje é que ainda só consegui passar uma receita, porque estou sem sistema. Até vim mais cedo, mas não posso fazer nada", queixava-se, admitindo que iria continuar a tentar ao longo da manhã.
Mas sem sucesso, pelo menos na meia hora que se seguiu. Que o diga Manuel Laço Rolhas que abandonava o edifício "aborrecido" por ter sido a segunda vez que ali se dirigiu, ficando sem receita por falha do sistema. "Diz que o aparelho não está bom. Tenho que cá voltar sexta-feira", lamentava o idoso de 83 anos, admitindo que ainda tem medicamentos em casa, mas receia que acabem.

"Sou diabético e tenho que ter cuidado. É que depois de ter a receita ainda tenho que a entregar na Junta de Freguesia para me trazerem os medicamentos de uma farmácia de Elvas", justificava. Maria Carlota Gancha teve mais sorte e deixou os exames marcados.

"Vou ter de pagar quase 50 euros, um dinheirão para quem vive da reforma, mas tem que ser", dizia resignada esta moradora de Barbacena, uma terra com menos mil habitantes onde os transportes públicos escasseiam - Barbacena dista 15 quilómetros de Elvas - levando a que haja enfermeiros a fazerem regularmente serviço domiciliário. Aliás, na mais recente greve dos enfermeiros - 22 de março - os pacientes de risco receberam cuidados de enfermagem nas suas casas.

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