Tinha aprendido com a maior referência de então nos transplantes de medula óssea, Ray Powles, no Royal Marsden Hospital, em Londres. A assinalar os 30 anos do serviço, foi feito um livro com 30 relatos de casos de êxito. E estão em curso as obras para um novo serviço, com maior capacidade, pronto em 2018..É diretor do serviço de transplantes de medula óssea do IPO. O nome é mais complicado....Podemos ser mais sofisticados e dizer serviço de Transplantação de Progenitores Hematopoiéticos. Hoje utilizamos células que não são provenientes da medula óssea e que conseguimos colher numa veia de um braço. São células muito primitivas, com capacidade de regenerar completamente uma medula óssea nova. A colheita no sangue periférico, para um dador, é mais confortável do que na medula óssea..O que o levou a interessar-se pelos transplantes?.Fiz a minha especialidade em Inglaterra. Aos 27 anos fui trabalhar em hematologia, quando a ideia de transplantação estava a começar, primeiro em Liverpool, depois em Manchester. Não conseguíamos curar os doentes e o transplante era uma porta que podia conduzir à cura. Falava muito disto com o meu mentor da altura, o doutor James Chang. Um dia, ele falou-me numa vaga no hospital Royal Marsden, de Londres, o principal centro da Europa de transplantação. Concorri, fui a uma entrevista e recebi um telefonema do diretor, o Dr. Ray Powles: "Olá Manuel, está bom? Quando quer vir trabalhar connosco?" Sentia-me nas nuvens..Estava tudo a começar?.Fui para lá em 1981 e eles tinham começado em 1977 ou 1978. O doutor Powles teve uma ideia que revolucionou a transplantação de medula. Os resultados até à data não eram muito entusiasmantes, porque há uma complicação que, na altura, era a principal causa de morte, a doença do enxerto contra o hospedeiro. Tinha acabado de ser introduzido no transplante de rim um novo medicamento imunossupressor, a ciclosporina, com menos rejeições. E ele pensou: se isto funciona no rim, se calhar vai funcionar na medula óssea..E resultou bem?.Espetacular, ele passou a ser uma referência a nível mundial. E eu ali a acompanhar aquilo tudo! Ele era encantador, terra a terra, discutíamos as ideias dele. Tive a sorte de ter estado no lugar certo no momento certo..O que o fez voltar para Portugal?.Estava fora há cinco anos, entretanto tinha casado, tinha dois miúdos e tínhamos mudado 14 vezes de casa. A minha mulher estava cansada, sem apoio familiar. Em Londres, tive contacto com doentes portugueses que iam lá para serem transplantados mas chegavam em situações complicadas. Pensei: não será possível pelo menos sabermos de quando devem ser referidos? E porque não fazer transplantes em Portugal?.Tinha garantias de trabalho?.O professor António Parreira, o professor Ducla Soares e o doutor Gomes de Oliveira acolheram-me no Serviço de Hematologia do Hospital de Santa Maria, com a perspetiva de vir a fazer-se transplantes. Só que eu era um bocado impaciente. Aquilo era imutável. O tempo ia passando e eu cada vez mais insatisfeito, a sentir que estava a perder tempo, com receio de desaprender. Pensei em voltar para o estrangeiro. Mas entretanto conheci o doutor Francisco Gentil Martins, que era do CDS e muito amigo do meu tio Nuno, que foi presidente da Câmara de Lisboa. Ele interessou-se, perguntou-me o que eu pensava fazer, e disse-lhe que o meu sonho era fazer transplantes em Portugal mas estava desapontado e pensava ir embora. "Não vais nada, amanhã vais falar comigo ao IPO." Era um cirurgião brilhante, um homem encantador, não percebia nada do que eu fazia mas teve uma total confiança em mim..Quantos transplantes já fizeram?.Perto de dois mil. Temos reduzido progressivamente a mortalidade associada ao transplante. Estamos com uma mortalidade, calculada aos cinco anos depois do transplante, que ronda os 20 por cento, o que é muito bom. Apesar de estarmos a tratar uma população de doentes mais velhos e com situações mais complicadas, porque há um conjunto de novos medicamentos e técnicas que permite ultrapassar obstáculos. Estamos a transplantar até aos 60 anos sem grande dificuldade e vamos até aos 67 ou 68 anos, se as pessoas têm um bom estado geral. Tem sido gratificante trabalhar com estes doentes mais velhos, escolhendo bem a estratégia do transplante, tendo o cuidado de avaliar a situação para conhecer a resistência do organismo, e escolhendo para cada doente a modalidade do tratamento mais bem tolerada..Essa é uma evolução da medicina, o não fazer igual para toda a gente?.É a medicina personalizada. Vamos entrar cada vez mais na chamada medicina molecular, em que se começam a conhecer os mecanismos moleculares que afetam o comportamento das células. É possível desenhar medicamentos especificamente para determinado tipo de mecanismos que, curiosamente, podem ser comuns a várias doenças que aparentemente não têm relação. Com estas técnicas sofisticadas de sequenciação de segunda geração, é possível desenharmos para cada doente um mapa das alterações que lhe causaram a doença. Isto ainda é dispendioso, mas a análise do DNA, que custava 150 mil dólares, hoje fica à volta de 10 mil e é provável que venha a baixar..Quando encontra um doente transplantado há 20 anos, como é a reação?.É sentir-me muito bem por dentro. Ainda hoje uma ex-doente nossa, uma rapariga muito bonita que veio do Porto - na altura ainda não se faziam transplantes no Porto -, veio dar-me um beijinho e dizer: faz hoje 25 anos que fui transplantada, trouxe um bolo para apagar as velas com a sua equipa. E trazia a filha pela mão..Os relatos do livro falam na dureza extrema do tratamento..Os doentes que fazem quimioterapia intensiva passam por períodos muito violentos porque, embora seja muito eficaz, é agressiva e com efeitos secundários importantes. O transplante é simplicíssimo, é como uma transfusão de sangue. O complicado vem depois e pode arrastar-se. A maior parte dos nossos doentes ao fim de um ano está sem medicação e volta à vida normal..É difícil a compatibilidade?.É difícil para as pessoas que não são brancas, porque dos 24 milhões de dadores que existem no mundo, 95 por cento são brancas e a sua constituição genética é forçosamente diferente de um indivíduo negro ou oriental. Mas mais uma vez a ciência deu um passo extraordinário. Hoje, e iniciámos isto no IPO em 2014, faz-se o transplante haploidêntico - o dador e o recetor só são iguais em 50 por cento dos antigénios, o que permite transplantar um doente com um filho, um pai ou uma mãe. Quase toda a gente tem um dador. Este é talvez o maior avanço na transplantação dos últimos anos..Está em construção o novo serviço?.Sim, e vai aumentar a nossa capacidade. Trabalhamos com sete camas, o que nos permite cerca de cem transplantes por ano, e vamos passar a dispor de doze, aumentando para 120 a 140. Temos uma lista de espera de doentes de meses, e os doentes nem sempre são transplantados na altura mais favorável. Temos pedido a colaboração de outros centros nacionais, ocasionalmente estrangeiros. A maior parte dos nossos doentes é do IPO de Lisboa, têm alguma ligação, mesmo sentimental, e preferem ser transplantadas aqui..As pessoas que passam pelo IPO sentem uma ligação pessoal muito forte..Essa é a marca do professor Francisco Gentil, que dizia "doente que não é recomendado por ninguém é recomendado pelo diretor". Não é um hospital muito grande, temos cerca de 200 camas, e as pessoas têm mais interação umas com as outras. O doente é o centro daquilo que se faz, tentando amenizar as situações e dar-lhe o apoio. O carinho conta quase tanto como a excelência técnica.