Quão cristalina é a ONU?

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Praticamente sem eco na imprensa ocidental, a Rússia tem hoje eleições legislativas. Talvez se dê pouca importância por estarmos focados no presidencialismo de Vladimir Putin, mas valia a pena fazer uma série de raciocínios sobre o que está em causa. A minha proposta passa pela Duma, segue para a Síria e termina em António Guterres. Estranho? Vamos por partes.
As últimas legislativas (2011) mergulharam Moscovo e São Petersburgo numa onda de protestos contínuos contra o regime, quer por indícios de fraude eleitoral quer por manipulação partidária por parte da corte afeta a Putin. De facto, os 5% de limite mínimo à representação parlamentar restringem a expressão dos cerca de setenta partidos entretanto registados, além de que dos quatro com assento na Duma dois sejam da chamada "oposição pró-regime", tendo o Rússia Unida, o partido do presidente, maiorias absolutas consecutivas. Não é expectável que o quadro mude e isso tem dois efeitos diretos na estratégia de Putin. Primeiro, consolida a sua posição nos equilíbrios internos até às presidenciais de 2018. Líderes regionais, oligarcas, legisladores ou destacados jornalistas vão continuar a convergir com a narrativa putinista de concentração de poder, revanchismo imperial e conservadorismo social.
Segundo, valida a conduta externa de Putin, sobretudo na Ucrânia e na Síria, política pública que mais aprovação popular colhe. Se a anexação da Crimeia lhe deu 80% de popularidade, a verdade é que na mesma altura as políticas sociais e económicas só colhiam 45/50%. Hoje, os valores estão próximos dos 15%, de acordo com um estudo recente do VCIOM. Ou seja, a agressividade externa é fortemente premiada em casa e o regime não sobrevive sem a pôr em marcha. As legislativas vão carimbar o sucesso desse rumo.
Um dos dois principais teatros estratégicos desta passada russa é a Síria, aliado fundamental no arco de interesses de Moscovo no Mediterrâneo Oriental - mais até do que no complexo puzzle do Médio Oriente -, país que na realidade já não existe depois de cinco anos de várias guerras civis entre múltiplos atores, todos apoiados direta e indiretamente por potências regionais que ali vão dirimindo interesses divergentes. Hoje, algumas destas Sírias que sobram estão na expectativa de que a décima oitava tentativa de implementar um roteiro de cessar-fogo duradouro possa finalmente ter algum sucesso, depois de Rússia e EUA terem desbloqueado, no papel, os seus antagonismos. Claro que para fazer chegar ajuda humanitária a cidades cercadas é preciso um entendimento entre Moscovo e Washington. Só que não é menos importante que Teerão e Riade se ponham em sintonia, ponto altamente duvidoso e praticamente ilusório a longo prazo. Já para não falar no efeito da incursão da Turquia no Norte sírio para travar o expansionismo curdo - que são quem melhor tem combatido o Estado Islâmico -, ou na recente cisão entre a Al-Nusra e a Al--Qaeda, a qual indicia um processo de multiplicação de grupos para fugir ao radar inter-nacional, gerar novas rotas de financiamento e controlar mais parcelas dispersas de território. Por outras palavras, a paz na Síria continuará a ser a mais bela das ilusões da política internacional nos próximos anos, numa convergência entre as mais perigosas correntes de insegurança (terrorismo, choque entre potências, limpezas étnicas, tragédia humanitária, Estado falhado, uso de armas químicas, êxodo de refugiados), obrigando ONU a mostrar, de uma vez por todas, para que serve.
Encontro-me entre os que recusam sacralizar a ONU como organização charneira da segurança internacional. Os seus limites políticos, orçamentais e operacionais estão à vista de todos, pese embora os enormes méritos de muitas das suas agências na diminuição do sofrimento humano espalhado pelo mundo. No entanto, como qualquer organização internacional, a ONU é o que os seus membros quiserem que ela seja, em particular os cinco com direito de veto sobre qualquer matéria de segurança global. Podemos discordar das regras, e eu discordo, mas são estas que prevalecem.
E como há uma catástrofe humanitária na Síria em cima da beligerância entre interesses de Estado antagónicos, a ONU tem aqui um teste absolutamente existencial: primeiro, ser o centro político gerador de um denominador comum entre a "comunidade internacional interessada" na Síria; segundo, aliviar a calamidade humana com meios à altura e, não menos importante, com credibilidade recuperada depois de escândalos em diversas missões. É por isto que a atual corrida a secretário-geral da ONU é tão relevante. Em Nova Iorque, os Estados membros vão ter de decidir se querem dar ao cargo peso político, independência, credibilidade, experiência na organização e em catástrofes humanitárias como a Síria, e um projeto estruturado (António Guterres); ou se preferem um perfil manobrável, não testado, fiel a uma burocracia zelosa e chegado a jogo pela porta do cavalo (Kristalina Georgieva). Dia 26 vamos saber se a ONU se dá ao respeito ou se prefere dar um monumental tiro no pé.

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