"Quanto mais vítimas come, mais quer." Como Khashoggi via o príncipe saudita
Se publicamente as críticas de Jamal Khashoggi ao monarca saudita sempre foram relativamente prudentes, em privado o jornalista assassinado no consulado de Istambul emitia opiniões em que o príncipe Mohammed bin Salman era visto com uma "besta", um "pac-man" que devora tudo por onde passa. É através de 400 mensagens trocadas no WhatApp agora divulgadas pela CNN que se conhece estas posições.
"Quanto mais vítimas ele come, mais ele quer", diz Khashoggi numa mensagem enviada em maio, logo após um grupo de ativistas sauditas ter sido detido. "Não ficarei surpreendido se a opressão atingir até mesmo aqueles que estão do lado dele."
A estação televisiva norte-americana teve acesso à correspondência entre Khashoggi e o ativista Omar Abdulaziz, de Montreal. As mensagens compartilhadas por Abdulaziz incluem gravações de voz, fotos e vídeos e revelam uma evolução da conversa para a ação. A dupla de ativistas começou a planear um movimento juvenil online que responsabilizaria o Estado saudita. "[Jamal] acreditava que Mohammed bin Salman é o problema, e disse que esse 'rapaz' deveria ser travado", disse Abdulaziz, em entrevista à CNN.
Mas em agosto, quando acreditava que as suas conversas poderiam ter sido intercetadas pelas autoridades sauditas, um mau presságio pairou sobre Khashoggi. "Deus nos ajude", escreveu numa das mensagens. Dois meses depois estava morto.
O amigo Abdulaziz avançou no domingo com um processo contra uma empresa israelita que criou o software que acredita ter sido usado para hackear o seu telefone. "A invasão do meu telemóvel desempenhou um papel importante no que aconteceu com o Jamal, lamento muito dizer", afirmou Abdelaziz à CNN. "A culpa está a matar-me."
Abdulaziz começou o protesto contra o regime saudita como estudante universitário no Canadá. As críticas acutilantes às políticas governamentais chamaram a atenção do Estado saudita, que cancelou a sua bolsa universitária. O Canadá concedeu-lhe asilo em 2014 e fez dele um residente permanente três anos depois.
Em contactos quase diários entre outubro de 2017 e agosto de 2018, Khashoggi e Abdulaziz conceberam planos para formar um exército eletrónico para atrair jovens sauditas e desmascarar a propaganda estatal nas redes sociais, alavancando o perfil de Khashoggi e os 340.000 seguidores de Abdulaziz, de 27 anos, no Twitter.
A ofensiva digital, denominada "abelhas cibernéticas", surgiu de discussões anteriores sobre a criação de um portal para documentar abusos dos direitos humanos na terra natal, bem como uma iniciativa para produzir curtas-metragens para distribuição móvel. "Só temos o Twitter", disse Abdulaziz, acrescentando que o Twitter é também a arma mais forte do governo saudita. "O Twitter é a única ferramenta que estão a usar para lutar e espalhar rumores. Fomos atacados, insultados, ameaçados tantas vezes e decidimos fazer alguma coisa."
O esquema dos ativistas envolveu dois elementos-chave que a Arábia Saudita pode ter visto como atos hostis. O primeiro envolvia o envio de cartões SIM estrangeiros para dissidentes na Arábia, para que pudessem twittar sem serem detetados. O segundo foi dinheiro. De acordo com Abdulaziz, Khashoggi prometeu 30 mil dólares iniciais e queria angariar apoio de doadores ricos.
Um mês depois, outra mensagem enviada por Abdulaziz confirma que a primeira transferência de 5 mil dólares chegou. Khashoggi responde com um emoji de polegar para cima. Mas no início de agosto, Abdulaziz afirma ter recebido notícias da Arábia Saudita de que funcionários do governo estavam cientes do projeto online. Passou a notícia a Khashoggi.
"Como sabem?" pergunta Khashoggi noutra mensagem. "Deve ter havido uma fuga", diz Abdulaziz. Três minutos decorrem até que que Khashoggi escreve: "Deus nos ajude."