Quando voar tinha estilo
Há mulheres que, assim que entram numa sala, a enchem totalmente. Independentemente da idade que tenham, são capazes de convocar todos os olhares, de criar – não porque queiram, simplesmente porque não podem deixar de o fazer – um formidável magnetismo à sua volta. Celina Pereira e Maria José Mealha continuam a ser assim. Não caminham, deslizam. Dançam a cada gesto, arrebatam a cada frase. São divas na idade maior, mas de uma elegância intemporal. Ambas foram assistentes da TAP, Celina em terra, Maria José a bordo. E ambas servem de ícone perfeito para o tempo em que voar era glamour e charme.
Nos anos dourados da aviação civil, uma viagem era uma viagem. Os voos chegavam a durar dias, com escalas e dormidas em hotéis de luxo. As refeições eram preparadas a bordo e servidas em loiça fina. As hospedeiras e os comissários tinham tempo para conversar com quem usava o transporte aéreo – e nessa altura eram exclusivamente as elites do regime, os artistas, as estrelas de Hollywood, os banqueiros, os industriais, os diplomatas. «Havia uma apresentação cuidadíssima, tanto nos passageiros como nos tripulantes», afiança Maria José Mealha. «Até meados dos anos de 1970, era impensável alguém voar de calções e havaianas. Os homens usavam fato de três peças e gravata, as mulheres vestido de gala, chapéu, maquilhavam-se e enfeitavam-se com jóias. Era um ambiente distinto e isso perdeu-se para sempre.»
Mesmo no aeroporto de Lisboa, tudo era diferente. Não havia cafés, apenas dois restaurantes exclusivos frequentados pelo establishment do Estado Novo e «os viajantes da vida, os aventureiros», diz Celina Pereira. «Tinha cadeiras forradas a veludo, pratos requintadíssimos e era onde se podia encontrar as elites do país. Muitas vezes fui lá jantar e abordei cantores, artistas, actrizes. Era um mundo fechado, onde se podia falar à vontade.» Ela própria é mulher de palco, nome grande da música cabo-verdiana [ver caixa]. Um dia encontrou Horace Silver, um pianista de jazz, e meteu conversa. «Tínhamos a música em comum e eu gostei tanto de falar com ele que o acompanhei até à porta do avião. Ah, isso só era possível nesses tempos.»
Sorria quando falar ao telefone
As primeiras assistentes, fossem de bordo ou de terra, eram admitidas por dois critérios apenas: a educação e a apresentação. «Prestávamos provas em que tínhamos de desfilar, para avaliarem a nossa elegância. Depois fazíamos exames de inglês e francês, testavam-nos em conversas para certificarem a nossa delicadeza e escolhiam as sempre melhores raparigas», relembra Maria José. Entrar para a TAP estava reservado às meninas das boas famílias, o que diz bem do prestígio da profissão.
As hospedeiras não podiam casar nem ter filhos. A sua missão era voar em grande estilo e, para tal, não podia haver distracções. «Nas assistentes de bordo, as exigências eram enormes, mas mesmo nós, as que estávamos em terra, tínhamos critérios de apresentação apertados. Não que nos importássemos com isso, bem pelo contrário», recorda Celina Pereira. «Era impraticável aparecer alguém que não estivesse bem penteado e maquilhado. As chefes controlavam até a costura das meias, tinham de estar direitas. E se por acaso estivéssemos a fazer atendimento telefónico, tínhamos ordens para sorrir enquanto falávamos com o nosso interlocutor.»
Nos primeiros tempos da aviação civil (a TAP começou a operar em 1946), não era raro os passageiros chegarem à Portela de limusina. Havia uma assistente de terra para acompanhar cada passageiro desde o momento em que entrava no aeroporto até pôr o primeiro pé no avião. O check-in e o controlo de segurança eram individualizados. A bordo, eram recebidos com uma flûte de champanhe francês, normalmente Moët & Chandon. «Os passageiros da primeira classe tinham um lounge no piso superior dos Boeing 747», recorda Maria José Mealha. «Serviam-se bebidas, charutos cubanos, e o café era de máquina, não esta coisa sensaborona que se oferece hoje.»
As refeições eram igualmente cuidadas. Para a primeira classe havia caviar Beluga de entrada e lagosta, faisão ou codorniz como prato principal. Mas mesmo em turística, o passageiro tinha direito a pratos que, hoje, poderiam muito bem ser servidos em executiva. Os vinhos pareciam saídos de uma prova de degustação. Com os digestivos – havia Chivas Regal velho e conhaque Courvoisier, por exemplo –, serviam-se maços de três cigarros Marlboro, Rothmans ou Kent. Os charutos, esses, eram Monte Cristo. Foi assim até ao final dos anos oitenta. E note-se que fumar nos aviões foi abolido para cortar custos, não por questões de saúde. É que a extracção de fumo consome muito mais combustível.
Tanto luxo haveria de surtir os seus efeitos: ainda no início dos anos sessenta, andar de avião era uma questão de status. Os ricos e famosos não demoraram muito a adoptar o novo transporte, abandonando de vez o comboio e o cruzeiro. É aliás assim que nasce a expressão jet-set – uma nova elite boémia percorria agora o mundo velozmente, viajando de festa em festa, de inauguração em inauguração. Adelina Arezes, coordenadora dos arquivos do Museu TAP, tem pastas com centenas de fotografias dos notáveis que embarcaram na transportadora aérea portuguesa. De Jackie Kennedy a Grace Kelly, passando por Romy Schneider, o rei de Espanha, Amália Rodrigues, Sza Sza Gabor ou Roger Moore. «A TAP teve, até ao início dos anos setenta, um fotógrafo de serviço chamado M.P. Carneiro, que capturava imagens dos passageiros mais colunáveis», diz. Se existisse na altura, a imprensa cor-de-rosa haveria de corar de inveja.
Seis dias num avião
Era no longo curso que os cuidados com os passageiros eram maiores. A Linha Imperial foi a primeira grande rota de longo curso da TAP. E agora pasme-se: ligava Lisboa a Lourenço Marques, a actual Maputo, em seis dias, com cinco pernoitas em hotéis luxuosos. Faziam-se 13 escalas, parava-se em Marrocos, Gâmbia, Libéria, Gana, Gabão, em Luanda, no Congo e no Zimbabwe, antes da aterragem final em Moçambique. O avião era um DC3-Dakota – com lugar para 21 passageiros – e a travessia completa custava trinta contos, uma fortuna para a altura. Em Janeiro de 1961, abre a Linha do Brasil, com partida de Lisboa, escalas no Sal e no Recife, e aterragem no Rio de Janeiro. Em Maio de 1969, a Linha dos Estados Unidos, com partida de Santa Maria, nos Açores, sem escalas até Nova Iorque.
Não havia cinema a bordo, claro. Ofereciam-se os jornais, jogava-se cartas, os passageiros selavam negócios e discutiam impressões, entre si, com as hospedeiras, ou até com o comandante. Havia tempo para tudo, até para crispar amores. Maria José Mealha chegou a ser pedida em namoro, muitas colegas em casamento. E no meio de uma vida desenraizada encontravam a bordo uma compensação para o seu deserto. «Estarmos ali era o mesmo que recebermos os convidados em casa», diz a antiga assistente de bordo.
«E depois havia algo de fantástico naquele tempo. Normalmente ficávamos uma semana no local de destino», conta. «Lembro-me que em Lourenço Marques o nosso hotel era o Polana, em Luanda o Continental. Sempre os melhores da cidade. Os passageiros convidavam-nos muitas vezes para festas, até para jantar nas suas casas.» A aviação, percebe-se nas suas palavras, era um mundo distinto. Ali só cabiam os privilegiados – e esses não eram só os passageiros, eram também os tripulantes.
Celina Pereira concorda. Apesar de ser assistente em terra, «trabalhar na aviação era sempre um cartão dourado». Os donos dos principais clubes nocturnos convidavam-na para frequentar a casa, ofereciam-lhe cartões de cliente e bebidas. Se dizia a alguém que era hospedeira na TAP, todas as portas se abriam. «O charme da profissão era tal que havia rapazes que vinham para o aeroporto só para nos ver passar. Ainda mais porque usávamos fardas lindíssimas, de costureiros franceses. Ai o orgulho que eu tinha em usar aquele uniforme.»
O mundo à parte que era a aviação civil massificou-se e, por isso mesmo, deixou de ser um mundo à parte. Os aviões perderam inegavelmente conforto e o glamour associado ao sector deu lugar à maximização económica. Segundo o Finantial Times, o espaço entre cadeiras na classe turística era, no início dos anos sessenta, o dobro do que é hoje. Os luxos de todos passaram a ser exclusivos da classe executiva, como as cadeiras que se transformavam em camas, permitindo aos passageiros dormir uma noite descansada. Desde os anos setenta que já não há toalhas de linho individuais nas mesas da classe turística, nem loiça Vista Alegre, nem copos de vidro. Já não se oferecem perfumes e malas de higiene aos passageiros de primeira. As hospedeiras já não seguram a mão das pessoas que têm medo de voar. Apanhar um avião, queira-se ou não, é por estes dias pouco mais do que uma banalidade.
Descobrir as diferenças
Apanhar o táxi, estacionar junto às partidas do aeroporto, procurar um carrinho para transportar a bagagem, pegar no bilhete e no passaporte e procurar no quadro electrónico qual é o balcão de check-in ou, para um voo curto, fazer o check-in automático. Despachar as malas, ir para a fila do controlo de segurança, retirar o computador portátil da mala, remover o cinto e descalçar os sapatos, passar no raio X, guardar o portátil na mala, pôr o cinto e voltar a calçar os sapatos. Beber um café com leite magro e adoçante num restaurante fast-food, comer uma sanduíche com duas fatias de alface, uma de fiambre e outra de queijo, embalada num saco de plástico. Esperar numa fila junto à porta de embarque, validar o bilhete e ouvir um voto repetitivo de boa viagem.
Procurar o lugar, arrumar a bagagem de mão no compartimento por cima das cadeiras, sentar, apertar o cinto, recolher a cadeira, esperar pelo sinal para poder voltar a recliná-la. Consumir uma refeição aquecida e separada por recipientes de plástico que encaixam perfeitamente num tabuleiro que encaixa perfeitamente numa mesa rebatível. Dormitar uns minutos numa posição desconfortável, com os pés a bater na cadeira da frente. Voltar a recolher a cadeira e a apertar o cinto, esperar pelo sinal para poder levantar-se, recolher a bagagem de mão e sair do avião ouvindo a saudação repetitiva da tripulação. Passar pelos restaurantes fast-food onde as pessoas bebem café com leite magro e adoçante e alimentam-se de sanduíches embaladas em plástico. Esperar numa fila para carimbar o passaporte, procurar um carrinho para transportar a bagagem, que se recolhe numa passadeira rolante. Sair do aeroporto, apanhar um táxi ou um comboio para o centro da cidade e, finalmente, chegar ao destino.
Quem utiliza o avião hoje pensa na viagem como uma espécie de teletransporte de um lugar para outro. A partir do momento em que roda a chave na fechadura de casa, o passageiro cumpre uma série de rituais padronizados, entra numa bolha que esbate a sensação de distância. Embarcamos num edifício em tudo idêntico ao edifício onde chegamos, para que nos saibamos mover rápida e eficazmente naquele espaço. O filósofo francês Michel Onfray, autor de Teoria da Viagem, chama-lhe o viver entre-dois. «É um lugar de extraterritorialidade que não parece dominado por nenhuma língua, nem por nenhum tempo. Que ponto exacto do céu permite dizer que passámos uma fronteira? O entre-dois provoca deste modo uma geografia particular, nem aqui, nem além, uma história própria, nem enraizada, nem atópica, um espaço novo, nem fixo, nem inalcançável, um tempo outro, nem mensurável, nem liso, uma comunidade nova, nem estável, nem durável.»
E pronto, em suma é isto que marca toda a diferença na maneira de voar hoje, quando comparada com há cinquenta anos. Nesse tempo, mesmo no ar, havia uma sensação das distâncias. Os pormenores requintados, as escalas e a personalização do serviço compensavam a descontextualização geográfica. Não se entrava numa bolha, cumpria-se uma peregrinação glamorosa. Vivia-se um filme, subia-se a um palco. Por estes dias, a importância de um voo resume-se à velocidade da deslocação. Nos anos de ouro da aviação, era como Poirot no Expresso do Oriente ou Isador Straus no Titanic. Era uma viagem.
VISTA DE PERFIL
Celina Pereira nasceu há 67 anos na ilha da Boavista, em Cabo Verde. No entanto, a sua alma é do Mindelo, São Vicente. Foi afinal ali que descobriu a música e a vontade de conhecer mundo. Chegou a Portugal em 1972, para completar o curso de Magistério Primário na Escola Superior de Educação de Viseu. Gravou o primeiro disco em 1976, Boa Vista Nha Terra e dez anos depois Força di Cretcheu. Seguiram-se vários álbuns, que gravava ao mesmo tempo que dava espectáculos em todo o mundo e trabalhava como hospedeira de terra na TAP. Dinamizou vários programas de rádio, fundou associações para os cabo-verdianos portugueses e, em 1990, com a gravação do álbum Estória, Estória, descobriu um novo talento que não voltaria a abandonar: contadora de histórias. Desde então, tornou-se um dos rostos da interculturalidade em Portugal. O seu empenho na divulgação da cultura cabo-verdiana e da educação multiétnica rendeu-lhe inúmeros prémios internacionais e o grau de comendadora da República Portuguesa, atribuído em 2003 por Jorge Sampaio. Vive em Lisboa, mas viaja frequentemente para as ilhas.
O luxo bem pago
Cada vez mais companhias estão a tentar recuperar o glamour que um dia a aviação teve. Há até agências especializadas, como a Dream Flights (em tradução literal, voos de sonho) ou a NetJets, que oferecem interiores espaçosos, um ambiente relaxante e uma tripulação atenciosa. O serviço inclui cozinha de categoria mundial (chegam a ser contratados chefs distinguidos com uma ou mais estrelas Michelin), bebidas à discrição, LCD e sistemas áudio individuais e a possibilidade de fumar sem restrições. São, obviamente, voos muito caros. Ir de Lisboa a Paris num destes jactos privados dificilmente custa menos de cinco mil euros.
Nas primeiras classes das companhias com voos regulares também há quem aposte na melhoria do serviço. E, de entre todos, o caso mais conhecido é o A380 da Emirates Airlines. Tem uma suite privada para cada passageiro, com cadeiras e mesas que se transformam em camas. Tem um serviço luxuoso, um catering de primeira categoria e um tratamento personalizado. Tem sala de reuniões e um bar a bordo. Tem chuveiro para poder tomar um banho a dez mil metros de altitude. E, por incrível que pareça, até tem uma pequena sauna. Mas não haja confusões: um voo de ida e volta, de Londres para o Dubai, custa a módica quantia de 4179 euros, com taxas incluídas.