Quando um cacilheiro enfrentou quatro navios de guerra

Um "ferry" com ativistas e jornalistas a bordo tentou chegar a Timor-Leste ocupado pela Indonésia. Terminou com flores no mar.
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"Isto é Papa Kilo Alfa India. Navio de guerra indonésio. Estão agora em águas territoriais indonésias." Foram estas palavras que se ouviram no comando do Lusitânia Espresso, um frágil ferry boat, rodeado de quatro barcos de guerra da Indonésia. Eram 7.30, hora local, de 11 de março de 1992, por trás daquelas fragatas via-se a ilha de Timor - foi há 25 anos.

"Aviso-vos diretamente: deixem imediatamente esta área", continuou a voz do oficial indonésio via rádio. E o barco português, depois de lançadas flores ao mar de Timor, acabou por deixar aquelas águas - não que fossem indonésias, não eram (eram de um território ocupado por uma potência estrangeira).

O barco "não era mais do que um cacilheiro", como recordou agora ao DN Rui Marques, o responsável da missão "Paz em Timor", que se propunha levar flores para o cemitério de Santa Cruz, em Díli, para homenagear as 200 pessoas que tinham sido ali mortas pelas tropas indonésias em novembro de 1991. "A tristeza de termos a nossa viagem parada ali" não retirou força ao "verdadeiro objetivo" que, sublinhou Rui Marques, "estava a ser cumprido", o do "impacto mediático" da ação.

Naquela manhã, a surpresa foi mitigada pela noite de vigílias. "Passámos a noite acordados. A primeira fragata apareceu na noite anterior e navegou sempre connosco", lembrou ao DN aquele que hoje é responsável da Plataforma de Apoio aos Refugiados. Avisados pelos militares, jogou-se em pouco tempo a decisão de manter o braço de ferro ou voltar a Darwin (Austrália). "Muito se poderia perder" com um "qualquer gesto irresponsável que nos fizesse associar a uma missão suicida, que descontaria muito no crédito que já tinha sido conseguido para a causa de Timor", explicou.

"Não estávamos numa ficção. A Marinha indonésia não era conhecida pela sua brandura", apontou, revelando que, na preparação da viagem, pediram um barco à organização ambientalista Greenpeace e esta descartou essa possibilidade, exatamente por causa da imprevisibilidade da Armada da ditadura de Suharto.

Outro fator que pesou na decisão de zarpar de novo para Darwin foi a necessidade de fazer chegar rapidamente as imagens recolhidas pelos jornalistas. Sem capacidade de transmitir por vídeo a partir do Lusitânia Expresso, os jornalistas das televisões estrangeiras e portuguesas a bordo precisavam de fazer chegar as cassetes rapidamente à Austrália. Também este facto foi decisivo: as primeiras imagens emitidas, a partir do lado indonésio, mostravam o ferry a dar meia-volta, sem que se mostrassem os quatros barcos de guerra à sua volta.

À chegada a Darwin, a reação dos timorenses "foi muito calorosa", lembrou por sua vez António Ravara, então presidente do Conselho Nacional de Juventude, mas que participava a título pessoal na viagem. "O que me surpreendeu foi a reação muito calorosa e de reconhecimento", insistiu este professor universitário. "Eles apreciam os gestos que lhes são feitos." Afinal, notou ao DN, os timorenses tinham vivido anos de "dificuldades e abandono", agora sentiam-se "acompanhados".

"A situação deles motivava ainda outros para fazerem ações, que não eram simples, não era uma manifestação no seu local, era uma ação que envolvia riscos, que eles reconheciam e apreciavam, eles que corriam riscos todos os dias", anotou António Ravara, que também sublinhou que "nunca tinha havido uma cobertura mediática sobre Timor tão ampla". Rui Marques recordou que "foi a primeira vez que Timor-Leste passou na CNN" - e esse era um tempo em que esta estação americana contava muito.

Passados estes 25 anos, é o presidente da República Democrática de Timor-Leste quem também sublinhou o reconhecimento, na mensagem que será lida hoje numa cerimónia evocativa da viagem, a que o DN teve acesso, ao escrever que os timorenses "acolheram nos seus corações este gesto de rara beleza".

Dirigindo-se a Rui Marques, acrescentou o presidente Taur Matan Ruak: "Num ato de extraordinária grandeza e de profunda solidariedade, um grupo de jovens de mais de 20 países, sob a sua coordenação, [reuniu] esforços e [deu] lugar a uma iniciativa que deixou marcas no movimento de solidariedade internacional pela causa do povo de Timor-Leste."

A bordo seguiam ativistas, jornalistas, individualidades, incluindo o antigo chefe de Estado Ramalho Eanes. "É invulgar haver um Presidente da República que, cessado o exercício das suas funções, mas continuando a ser uma referência, um expoente da democracia portuguesa, tenha podido aceitar e personalizar um repto desses. E lá esteve, convosco", defendeu Marcelo Rebelo de Sousa, nas palavras dirigidas aos participantes da iniciativa.

Deixando para trás a ilha, vigiados pelos navios de guerra, Rui Marques admitiu que a esperança morava naquele barco. "Não sabíamos como nem quando, mas um dia Timor seria independente." Dez anos depois, os timorenses festejaram a autodeterminação, a independência e a liberdade. "Claro que valeu a pena fazer a viagem", concluiu.

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