Quando Truffaut canonizou Hitchcock
Uma das cenas mais inquietantes, e também mais conhecidas, do filme Suspeita, de Alfred Hitchcock, é aquela em que Cary Grant sobe as escadas até ao quarto onde se encontra Joan Fontaine, com um copo de leite numa bandeja - a brancura do líquido, na sombra, fascina tanto quanto intimida. Hitchcock explica o ardil: para que o copo tivesse semelhante efeito, imagine-se, apenas o iluminou por dentro com uma pequena lâmpada...
Esta é uma das várias revelações que o mestre do suspense fez durante os oito dias de entrevista que teve com François Truffaut, no verão de 1962, em Los Angeles, nos estúdios da Universal. É sob a égide desse marco da história do cinema, convertido num livro capital publicado em 1967 - Hitchcock/ /Truffaut - que o crítico americano Kent Jones procurou reavivar o legado do cineasta inglês, com um documentário homónimo a estrear-se nas salas portuguesas em agosto.
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O verão cinematográfico fica assim mais recheado, promovendo um regresso aos clássicos para nos lembrar da existência de uma palavra crucial (e que anda meio perdida): cinefilia. Foi o espírito cinéfilo que levou Truffaut, na altura com 30 anos e três longas--metragens, a pedir para se encontrar com Hitchcock (que tinha Os Pássaros em pós-produção), movido pelo nobre propósito de desmantelar a imagem vigorante do entertainer. Truffaut acreditava, e conseguiu prová-lo depois dessa série de entrevistas, que Hitchcock era um genuíno artista, ou, na expressão dos Cahiers du Cinéma - de que fazia parte -, um auteur. Acompanhados da tradutora Helen Scott e do fotógrafo Philippe Halsman (que tirou a famosíssima fotografia de Albert Einstein com a língua de fora), a dupla de realizadores protagonizou um momento, de algum modo, revolucionário, um empreendimento jornalístico pioneiro no quadro da crítica cinematográfica internacional.
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Hitchcock/Truffaut é uma viagem de 80 minutos pelo estimulante universo hitchcockiano, através da "lente" especial que é o livro, generosamente ilustrado, de Truffaut. Mas Kent Jones, na posse do áudio das conversas e de imagens de arquivo, soma aos diversos documentos entrevistas suas aos entusiastas David Fincher, Wes Anderson, James Gray, Olivier Assayas, Peter Bogdanovich, Martin Scorsese, Kiyoshi Kurosawa, Arnaud Desplechin, Paul Schrader e Richard Linklater - não poderia deixar de mencionar todos, porque é justamente a substancial marca da cinefilia que torna este trabalho incontornável.
Apenas se sente a falta de Brian De Palma, que declinou o convite por, naquele momento, ser ele o artista "em estudo", e o entrevistado exclusivo no documentário de Noah Baumbach e Jake Paltrow, intitulado De Palma.
No caso de Hitchcock/Truffaut, é a dinâmica dos discursos, o isolamento de determinadas "janelas indiscretas" da obra de Hitchcock, e o diálogo inicial com o cinema de Truffaut, que constitui uma boa fatia de conhecimento e renova a curiosidade.