Quando os papas tropeçam nas palavras
Não é de agora que um papa tropeça numa frase polémica, numa ideia mais ambígua, numa declaração que sai fora de portas ou que se perde na tradução e provoca clamor entre crentes e não crentes.
No imenso arquivo da internet, é possível descobrir algumas destas frases, ideias e declarações que marcaram os mais recentes pontificados, desde João Paulo II, em 1978, passando por Bento XVI - que ousou resignar num gesto repetido apenas pela segunda vez -, até Francisco, que ainda nesta semana viu os serviços de imprensa do Vaticano corrigir uma expressão sua sobre a homossexualidade. Aliás, parece ser no campo da moral sexual que os papas mais são falíveis, e é por aí que o DN começa.
"A Igreja condena como ofensa grave à dignidade humana e à justiça todas aquelas atividades dos governos ou de outras autoridades públicas, que tentam limitar por qualquer modo a liberdade dos cônjuges na decisão sobre os filhos. Consequentemente, qualquer violência exercitada por tais autoridades em favor da contraceção e até da esterilização e do aborto procurado é absolutamente de condenar e de rejeitar com firmeza." - João Paulo II, in Exortação Apostólica Familiaris Consortio, 1981
Esta afirmação categórica tem marcado a posição da Igreja Católica desde a encíclica "Humanae vitae", de Paulo VI (1968), sobre os métodos contracetivos. João Paulo II repetiu várias vezes esta relação entre contraceção e aborto, exasperando quem na Igreja pedia outra abertura no discurso aos métodos anticoncecionais (em linha com a prática sexual quotidiana de milhões de crentes) e quem no terreno (como por exemplo muitos missionários) atendia à realidade das doenças sexualmente transmissíveis.
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"A realidade mais eficiente, mais presente em primeira linha na luta contra a sida é precisamente a Igreja Católica, com os seus movimentos. Diria que não se pode superar este problema da sida só com dinheiro, mesmo se necessário; mas se não há a alma, se os africanos não ajudam [assumindo a responsabilidade pessoal], não se pode superá-lo com a distribuição de preservativos: ao contrário, aumentam o problema." - Bento XVI, 17 de março de 2010
No voo que o leva de visita aos Camarões e a Angola, o Papa Bento XVI - como agora Francisco - avança com uma frase que, fora de contexto, ganha proporções gigantes. O papa agora emérito tentava elogiar os muitos projetos que instituições católicas desenvolviam (e desenvolvem), também em África, de apoio a doentes de sida. O preservativo agrava o problema, é o que sai nas notícias, com uma frase replicada de forma mais imediatista, a partir do texto da France-Presse: "A tragédia da sida não pode ser resolvida só com dinheiro, nem pode ser resolvida com a distribuição de preservativos, que pode até aumentar o problema."
Já o Papa Francisco, também no regresso de uma viagem a África, em novembro de 2015, afirma que o preservativo "é um dos métodos" para prevenir o contágio da sida. Mas acrescenta: "Isto não é o problema, o problema é maior", enumerando "a desnutrição, a exploração das pessoas, o trabalho escravo, a falta de água potável", como "os problemas".
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"A sexualidade, mediante a qual o homem e a mulher se doam um ao outro com os atos próprios e exclusivos dos esposos, não é em absoluto algo puramente biológico, mas diz respeito ao núcleo íntimo da pessoa humana como tal." - João Paulo II, in Exortação Apostólica Familiaris Consortio, 1981
"O corpo deixa de ser visto como realidade tipicamente pessoal, sinal e lugar da relação com os outros, com Deus e com o mundo. Fica reduzido à dimensão puramente material: é um simples complexo de órgãos, funções e energias, que há de ser usado segundo critérios de mero prazer e eficiência. Consequentemente, também a sexualidade fica despersonalizada e instrumentalizada: em lugar de ser sinal, lugar e linguagem do amor, ou seja, do dom de si e do acolhimento do outro na riqueza global da pessoa, torna-se cada vez mais ocasião e instrumento de afirmação do próprio eu e de satisfação egoísta dos próprios desejos e instintos." - João Paulo II, in Carta Encíclica Evangelium Vitae, 1995
A perspetiva hedonista e egoísta do corpo e da sexualidade é sempre criticada por João Paulo II, rejeitando uma vida sexual que vá para lá de um mero mecanismo de reprodução, que se reflete depois na rejeição dos métodos contracetivos artificiais.
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"Deus deu-te os meios para seres responsável. Alguns creem, perdoem-me a expressão, que para serem bons católicos devem ser como coelhos." - Francisco, janeiro de 2015
Uma linguagem mais popular é uma marca de água do pontificado deste argentino. De visita às Filipinas, o Papa Francisco foi claro como poucas vezes os bispos de Roma o eram. "A abertura à vida é uma condição do sacramento do matrimónio, mas isso não significa que os católicos devam fazer crianças em série. Falei com uma mulher, grávida do seu oitavo filho depois de sete cesarianas, e disse-lhe: 'Você quer deixar órfãs sete crianças'", contou. Para Francisco, o exemplo desta mãe "é de irresponsabilidade". A mulher respondeu ao Papa que confiava em Deus e ele retorquiu que não é preciso reproduzir-se que nem coelhos.
"Mostra-me então o que Maomé trouxe de novo. Não encontrarás senão coisas más e desumanas, tal como o mandamento de defender pela espada a fé que ele pregava." - Imperador Manuel II Paleólogo (1348-1425), citado por Bento XVI, setembro de 2006
Bento XVI enfurece o mundo muçulmano, abrindo palco à fúria de uma rua mais integrista nesses países. O porta-voz do Vaticano, Federico Lombardi, tentou enquadrar (como agora, no caso de Bergoglio, os serviços de imprensa apresentaram uma explicação para as palavras do bispo de Roma): "A propósito das reações de alguns representantes muçulmanos acerca de certas passagens do discurso do Santo Padre na Universidade de Ratisbona, é oportuno notar que - como se depreende de uma leitura atenta do texto - o que interessa ao Santo Padre é uma recusa clara e radical da motivação religiosa da violência", justificava o texto.
Dois meses depois, Bento XVI desloca-se à Turquia e entra na Mesquita Azul, tentando mostrar o seu respeito pelos muçulmanos, murmurando uma prece voltado para Meca, num discreto gesto de oração à maneira islâmica.
"Os comunistas roubaram-nos a bandeira. A bandeira dos pobres é cristã, a pobreza está no centro do Evangelho. Os comunistas dizem que tudo isto [a pobreza] é algo comunista. Sim, claro, como não? Mas vinte séculos depois [da escritura do Evangelho]. Quando eles falam, nós poderíamos dizer-lhes: pois sim, sois cristãos." - Francisco, Il Messagero, junho de 2014
Num discurso social, que em muito bebe na realidade da América Latina, Bergoglio resumiu assim aqueles que o apelidavam de "marxista" por criticar insistentemente o capitalismo desenfreado. Para o argentino que hoje é bispo de Roma, cuidar dos pobres não é algo que os comunistas descobriram - insistindo que esta deve ser sempre a prática dos cristãos. É este o mesmo Papa que desanca os cardeais, em fevereiro de 2015, desafiando-os a "abandonar os seus paços" e a deixarem-se "inquietar pelos marginalizados". "Não se sintam tentados a estar com Jesus, sem quererem estar com os marginalizados, isolando-se numa casta que nada tem de autenticamente eclesial."
"Se uma pessoa é gay, procura Deus e tem boa vontade, quem sou eu para julgá-la?" - Francisco, julho de 2013
Perante as revelações de que um seu assessor era homossexual, o Papa Francisco afirmou (também numa conferência de imprensa a bordo de um avião, no regresso de uma viagem ao Brasil) que não lhe cabia julgar os homossexuais. O que criticava era a eventual existência de um lóbi gay, nomeadamente na Cúria Romana. "Vocês veem muita coisa escrita sobre o lóbi gay. Eu ainda não vi ninguém no Vaticano com um cartão de identidade a dizer que é gay. Dizem que há alguns. Quando alguém encontra uma pessoa assim, deve distinguir entre o facto de essa pessoa ser gay ou formar um lóbi gay porque nem todos os lóbis são bons. Isso é que é mau", justificou Francisco.