Quando os japoneses ocuparam Timor. E os portugueses e timorenses que os combateram
Dizia Miguel Torga, num dos volumes do seu Diário, que Portugal olhava o desenrolar da Segunda Guerra Mundial como "quem espreita a tragédia do alto do monte". Mas esta calmaria, decorrente da política de neutralidade assumida pelo governo português, tinha a fragilidade de uma candeia ao vento e seria posta em causa quando, a 19 de fevereiro de 1942, a então designada metrópole foi sobressaltada por inquietantes notícias vindas do Sudeste Asiático "Tropas japonesas desembarcaram na parte portuguesa de Timor o que representa uma grave violação dos nossos direitos soberanos", lia-se a toda a largura da primeira página do Diário de Lisboa. Uma notícia que também foi capa do DN. E na generalidade dos jornais nacionais, apesar da vigilância apertada da censura.
O drama que se seguiu a estes acontecimentos é o tema da série de televisão em sete episódios de 50 minutos cada, realizada por Francisco Manso a partir de argumento do historiador já falecido António Monteiro Cardoso, Abandonados, que estreia no dia 21 na RTP 1. O objetivo é contar a história real, mas ainda muito desconhecida, da invasão japonesa à então colónia portuguesa de Timor, em plena Segunda Guerra Mundial, quando os nipónicos integravam as forças do Eixo (o que os tornava aliados da Alemanha nazi e da Itália de Mussolini) e tinham atacado já a base norte-americana de Pearl Harbor (a 7 de dezembro de 1941) bem como os territórios britânicos de Hong Kong e Singapura. Para o realizador, "contar estes acontecimentos é falar de uma história intencionalmente esquecida, de uma tragédia ocultada pelo governo de Salazar e do abandono de que foram vítimas os portugueses e os timorenses. Recordar esse período da nossa história (e de Timor-Leste) é dar a conhecer, sobretudo aos jovens, a coragem de alguns poucos contra o poder brutal do agressor, que atuava com o maior desprezo e sem complacência pelos mais elementares direitos das populações."
Este espírito de missão dos envolvidos na série da RTP é partilhado pelo ator Marco Delgado, protagonista no papel de um dos heróis esquecidos da época, o tenente Manuel Jesus Pires. Como disse ao DN: "É, para mim, uma honra dar a conhecer mais um grande herói português, ao mesmo tempo que é também uma grande responsabilidade porque estamos perante alguém que existiu, que não é uma personagem de ficção." Assumidamente apaixonado por História, o ator realça o papel da sua personagem como "alguém que se sacrificou, num final trágico, pelos seus semelhantes e que, ao contrário do governo de Salazar, nunca desistiu. Escreveu cartas ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, mas também ao presidente do Brasil na época, Getúlio Vargas, reuniu várias vezes com os oficiais australianos. Ele estava perfeitamente ciente de que as alegadas zonas de proteção que os japoneses supostamente criaram para os neutrais portugueses eram autênticos campos de concentração. "
Recordemos o filme dos acontecimentos: Na noite de 19 para 20 de fevereiro de 1942, uma frota japonesa desembarcou em Díli com cerca de 1500 soldados, não demorando a ocupar a cidade após vencer uma breve resistência. Em simultâneo, a marinha e força aérea nipónicas atacavam a parte ocidental da ilha, sob administração holandesa. Como pretexto para o ataque à colónia de um país neutral, o governo japonês alegou o facto de ali existir um contingente de tropas aliadas (australianas) desde dezembro de 1941, com o suposto propósito de fazer de Timor uma "rampa de lançamento" para um ataque ao Japão. Na sequência do desembarque japonês, este contingente militar australiano retiraria para as montanhas, onde estabeleceu uma base de resistência e guerrilha à ocupação japonesa. Mas não foi sozinho. Como veremos em Abandonados, foi acompanhado por vários portugueses e timorenses que estavam dispostos a tudo para superar a ausência de respostas eficazes e ordens claras vindas de Lisboa.
No Arquivo Nacional da Torre do Tombo, a troca de correspondência entre Díli, a metrópole e a nossa representação em Tóquio neste período (proveniente do arquivo Salazar) dá conta de uma situação insustentável, até do ponto de vista humanitário. A 25 de abril de 1942, o Ministério dos Negócios Estrangeiros enviava à Embaixada de Portugal em Tóquio um telegrama em que se podia ler "Segundo informações que Governador Timor diz absolutamente confirmadas chefe posto Hatelia foi preso por tropas japonesas estando incomunicável também enfermeiro cinco indígenas governador protestou junto de cônsul de Japão sem resultado." No dia seguinte, seguia-se nova comunicação ainda mais alarmada do MNE: "Governador dá conta japoneses cada vez mais arrogantes e continuam a fazer prisões indígenas Díli e arredores". A 28 de abril, era a vez do Governador português em Timor escrever: "Situação geral gravíssima impossível de manter face a atitude de japoneses para com população que tem sofrido horrores sem que seja possível dar-lhes qualquer amparo eficaz visto as tropas nada respeitarem."
Neste cenário de guerra aberta, ainda que não declarada, avulta a figura do Tenente Pires (interpretada, como vimos, por Marco Delgado). Administrador do distrito de São Domingos (hoje município de Baucau) em 1942, fugiu para a Austrália e voltou com soldados aliados para lutar na guerra de guerrilha contra os invasores na Batalha de Timor. Pagou a ousadia com a vida, já que foi preso e morto pelos japoneses em data imprecisa durante o ano de 1944. Outra figura notável neste movimento foi D. Aleixo Corte Real, chefe timorense que se opôs aos militares japoneses e foi também fuzilado, em 1943. Tudo se agravaria a partir do final de 1942 quando os australianos retiraram os seus homens da ilha e Timor ficou sob plena ocupação japonesa até ao final da guerra, em 1945. A 5 de setembro, após o lançamento das bombas atómicas norte-americanas em Hiroxima e Nagasáqui e da rendição do Japão, o comandante japonês entregou as suas armas ao governador português de Díli.
O realizador Francisco Manso realça o facto de esta série "ter um enorme significado para Portugal e para Timor-Leste. Mas não só, tem também um grande significado para a Austrália pois algumas centenas de corajosos militares australianos fizeram uma luta de guerrilhas durante cerca de um ano, com assinalável sucesso, contra o invasor japonês." Mas esta é também, realça, uma história de desfecho trágico em que um punhado de portugueses e vários timorenses, resistiram nas montanhas de Timor à poderosa máquina de guerra japonesa, entre o início de 1942 e finais de 1944. Hoje calcula-se que, às mãos dos invasores, tenham morrido mais de 50 mil pessoas, na sua maioria civis timorenses e portugueses.
Rodada em plena pandemia, Abandonados tem como verdadeiro cenário a ilha da Madeira, com as suas altas montanhas e vales profundos capazes de evocar a paisagem de Timor. Marco Delgado lidera um elenco de mais de 70 atores, composto por Maya Booth, António Pedro Cerdeira, Soraia Tavares, Elmano Sancho, Luís Esparteiro, Virgílio Castelo, Joaquim Nicolau, Vítor Norte, para além dos atores brasileiros José de Abreu e Chico Diaz. Francisco Manso, produtor e realizador, há muito que vem demonstrando o seu interesse por temas históricos, como provam filmes como O testamento do senhor Napumoceno (1997), O último condenado à morte (2009), Assalto ao Santa Maria (2010), O Cônsul de Bordéus (2011) e O nosso cônsul em Havana (2019).
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