Quando o riso desenfreado nos coloca questões sérias
Com o espectáculo Sobre Horacios y Curiacios termina a residência do Teatro de La Abadía no Teatro São João, que ofereceu ao público a leitura encenada de Hamelin, do espanhol Juan Mayorga, uma exposição comemorativa de dez anos de activade, e ainda outra peça, Azaña, una pasión española, com encenação de José Luis Gomez, director do La Abadía. No início do próximo ano haverá retribuição, com o Teatro São João a instalar-se em Madrid para dois espectáculos Cabelo Branco é Saudade, de Ricardo Pais, e Woyzech, de Buchner, encenado por Nuno Cardoso.
Sobre Horacios e Curiacios, que estará em cena até sábado, é uma descida ao universo de Bertold Brecht protagonizada por seis palhaços. A condução pertence a Hernán Gené, que adaptou a peça de 1934 (Os Horácios e Curiácios), em que o dramaturgo alemão denunciava os ímpetos belicistas do regime nazi. Quase 70 anos depois, é a vez da guerra no Iraque servir de fole ao trabalho dramatúrgico de Gené, que exacerba aqui alguns dos mecanismos de Brecht, como o distanciamento crítico ou alienação. Através das "palhaçadas" dos actores perpassa uma visão muito particular do teatro, que nas palavras do encenador é uma "festa civil, lúdica e lúcida", ao mesmo tempo que se radicalizam processos do teatro épico. "Os palhaços não pretendem mudar nada", defende Julio Cortázar, um dos actores. "Não têm qualquer discurso moral. Limitam-se a assinalar o horror através do riso, cabendo ao espectador a reflexão". Outro dos protagonistas, Luis Bermejo, falou do aspecto histriónico como "um lugar produtivo, mais emocional e menos intelectualizado", recordando uma longa tradição de crítica espalhafatosa e bem humorada,desde Chaplin e Buster Keaton até as peças de Dario Fo.
Na opinião dos actores, esta forma de proceder encontra-se nos antípodas do pacifismo, uma vez que existe um acto de corrosão, uma forma interventiva que não passa pela exposição indignada de argumentos. Este modo de crítica assemelha-se, de certa forma, aquele que foi praticada pelos zazous durante o período de ocupação de Paris pelas tropas alemãs. Este grupo de jovens exibia uma forma de desrespeito pelo invasor que passava pelos modos afectados e pela roupa garrida, pelo sarcasmo de café e pelas festas clandestinas onde dominava o jazz.