Quando já só resta o sonho de criança e o amor ao futebol

O que fazem nos Distritais um campeão, um vice-campeão e um jogador que a época passada disputou a Liga Europa?
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Ao todo somam 480 jogos no principal escalão do futebol português, disputaram a Liga dos Campeões, a Liga Europa e preencheram o currículo com títulos. Hoje em dia são estrelas em fim de carreira que atuam nos distritais.

Amoreirinha, Mário Loja e Artur são apenas três exemplos de jogadores que deixaram o futebol para segundo plano e hoje vão alimentando a paixão pela modalidade numa esfera muito menos competitiva, sem a pressão de outros tempos em que atuavam em clubes da I Liga e eram profissionais. Amoreirinha, campeão nacional no Benfica de Giovanni Trapattoni, fala em "gosto pelo futebol, que sempre foi o sonho de criança".

Mário Loja, formado no Vitória de Setúbal e vice-campeão no Boavista, não tem problemas em reconhecer que, aos 40 anos, representa o Comércio e Indústria, primeiro clube de José Mourinho, por "amor ao futebol". E o que dizer de Artur, médio que ainda na época passada disputou a Liga Europa ao serviço do Arouca e agora defende as cores do seu Beira-Mar?

"Foi uma decisão um bocadinho pessoal, tinha algumas propostas do estrangeiro e de cá, mas optei pelo meu clube, o Beira-Mar. Tinha ofertas da II Liga e outras do Campeonato de Portugal que nem equacionei. Não fazia sentido deixar de ser profissional e não ir para o meu clube", confessa o médio de 34 anos que preferiu dar primazia à vertente familiar.

"Não penso muito nisso de estar nos Distritais. Foi uma decisão pessoal, queria dar mais estabilidade à minha família, o meu filho ia entrar para escola e não queria que ele andasse com a casa às costas", revela o ex-jogador do Arouca.

Voltando a Amoreirinha, o agora jogador do Sampedrense (clube da Associação de Futebol de Viseu), depois de ter sido internacional por Portugal em todos os escalões jovens e campeão em Portugal e na Roménia, salienta uma conversa determinante. "Na época 2015-16 as coisas correram-me bem a nível pessoal no Penafiel, fiz mais de 30 jogos e a verdade é que tive algumas abordagens para jogar como profissional na II Liga. Mas os valores apresentados levavam-me a adiar uma decisão até que percebi que não valia a pena continuar a ser profissional. Juntamente com a minha mulher optámos por começar a preparar a nossa vida para além do futebol e, por isso, vim para São Pedro do Sul", destaca o futebolista de 33 anos.

A barreira e a admiração

De um momento para o outro, jogadores de pouca expressão, que treinam à noite após a sua atividade laboral, veem lado a lado intérpretes que já estiveram entre a elite. Por exemplo, Mário Loja, que defrontou Totti na extinta Taça UEFA ou Beckham e Oliver Kahn na Liga dos Campeões. Ou Amoreirinha, que foi treinado em 2004-2005 por Giovanni Trapattoni e teve como colega Simão Sabrosa. Para não falar de Artur que com as camisolas de Marítimo, Arouca e Beira-Mar soube o que foi vencer os três grandes.

"Ao início havia uma barreira que com naturalidade foi-se diluindo. Eles estavam habituados a ver-me noutro patamar, na televisão, mas perceberam porque vim para o Beira-Mar. Nos primeiros tempos acharam estranho mas depois entenderam que eu sou uma pessoa tranquila e que podiam estar à vontade comigo", confessa Artur.

"Fui bem recebido, nunca senti um tratamento diferente, talvez alguma admiração por parte dos mais novos que ambicionam outros voos. Pode ter havido ao início um pouco de timidez mas depois vão-me conhecendo e percebendo que não há razão para haver distância nem eu faço questão que exista. Depois, aqueles jantares que se fazem ajudam um bocadinho, soltamo-nos, vamo-nos dando a conhecer e, pronto, percebem que o Amoreirinha é igual aos outros", realça bem disposto o defesa.

O vice-campeão nacional em 2002, Mário Loja, por seu turno, revela alguma contestação por parte dos adversários: "Na minha equipa lidam bem, porque eu sou da zona e alguns já me conheciam. Os mais novos têm interesse porque não me conheciam e mostram curiosidade em saber histórias e com quem joguei. A maior parte dos adversários tem uma atitude positiva, uma atitude de respeito, mas há sempre um ou outro que levam as coisas mais a peito. Há jogadores de outras equipas que questionam como é que alguns árbitros falam comigo de uma forma diferente. Não é por tratares um árbitro pelo nome próprio que estás a faltar ao respeito, mas há jogadores a quem isso faz muita confusão."

Artur sublinha que "árbitros e adversários lidam bem" com a sua presença. "Sou eu que tenho de me adaptar mais a eles do que eles ao Artur, há respeito e há coisas com as quais não concordo, o nível da arbitragem e do jogo não são os mesmos dos escalões acima mas já se joga bom futebol nos distritais."

Artur, como o próprio referiu, decidiu-se pelo regresso ao clube de sempre a pensar no filho - "hoje posso estar mais presente e não há dinheiro que pague isso". Mas Amoreirinha e o quarentão Mário Loja são alvo de reclamações por parte da família por continuarem a ter os fins de semana ocupados. "Quem reclama mais são os meus pais e não é tanto pelo filho, é mais pelos netos. E os meus filhos também reclamam mas eles entretêm-se mais com as brincadeiras", afirma Amoreirinha.

O fim e o futuro

Não há forma de contornar as evidências. Estes três jogadores estão em fim de carreira mas o mais velho de todos, Mário Loja, ainda não pensa no adeus até porque tem realizado quase todos os jogos: "Não sei até quando vou jogar." Amoreirinha, ainda com 33 anos, também desconhece o adeus à modalidade como praticante mas já vê o final ao virar da esquina. "Quando tomei a decisão de vir para o Sampedrense pensei que ia jogar mais um ano ou dois, adorava poder subir de divisão e gostava de terminar em grande, mas já vou sentindo que os anos começam a pesar até porque tive algumas lesões", confessa.

Para Artur, que pondera inclusivamente voltar a um patamar mais alto desde que seja "um projeto" que o faça "abdicar de algumas coisas" que entretanto ganhou, o final de carreira está ainda distante: "Não penso em terminar, nunca tive uma lesão grave, gosto de treinar. Tenho essa paixão, enquanto as pernas me permitirem e as pessoas contarem comigo."

A pensar no futuro, Artur está "a acabar uma formação no 12.º ano" e a frequentar "o curso de Treinador de 1.º nível". "Tenho muita paixão pelo treino, mas não sei se vai dar, estou a preparar o futuro com calma, passo a passo, sem aquela azáfama do antigamente. As pessoas não têm ideia... enquanto profissionais temos muito tempo livre, treinamos duas horas por dia mas a cabeça está sempre a pensar naquilo, por muito que a gente não queira o subconsciente está sempre ligado", explica.

Mário Loja trabalha há dois anos na SAPEC, uma empresa de produtos agrícolas, e continua a ambicionar uma experiência no futebol e em especial no seu Vitória de Setúbal. "Claro que gostava de voltar ao Vitória, mas nunca surgiu nada de concreto. Gostava de ficar ligado ao futebol, vamos ver o que vai surgindo. Até hoje nunca apareceu nada de aliciante e que me diga que tem pernas para andar."

Por fim, Amoreirinha, a quem o cargo de treinador não o seduz propriamente. "Treinador não, acho que já são demasiados a ser treinador em Portugal, compensa em meia dúzia de clubes, o resto é andarmos iludidos. Como adjunto de um amigo pode acontecer mas a mim fascina-me mais o dirigismo e a organização. Mas fora do futebol tenho a ideia de abrir algo, a minha mulher é licenciada em Veterinária, por isso equacionamos algo nessa área", revela.

Numa realidade muito diferente da que já viveram vão passando a experiência dos grandes palcos. Como retribuição apenas o gosto de jogar futebol, ainda que Amoreirinha confesse que recebe um "valor simbólico" como todos os jogadores do Sampedrense.

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