Quando Humphrey Bogart simbolizava o "filme negro"
Quem se lembra do filme Relíquia Macabra (1941), de John Huston? Será que a sua sofisticação narrativa e a sua influência histórica são conhecidas dos espectadores mais jovens?
Podemos evocá-lo a partir de uma pergunta de algibeira que nos leva a passar pela televisão. Assim, quando vemos The Night Of, uma das mais espantosas séries que a televisão americana produziu nos últimos anos (lançada em julho pela HBO), que heranças ali encontramos? A primeira é de natureza literária, envolvendo uma riquíssima tradição balizada por autores como Raymond Chandler (1888-1959) ou Dashiell Hammett (1894-1961), centrada em narrativas em que as teias do crime desafiam a estrutura moral dos protagonistas, muitas vezes desembocando numa morte sem redenção. A segunda remete-nos para a tradição expressionista alemã, com todos os fantasmas noturnos e noctívagos que pululam em títulos inesquecíveis, de O Gabinete do Dr. Caligari (1920), de Robert Wiene, a M - Matou (1932), de Fritz Lang.
É na encruzilhada dessas memórias que encontramos o chamado "filme negro", com a sua galeria de detetives amargos, mulheres indecifráveis e criminosos de infinitas crueldades. O filme de Huston está no centro de todo esse processo criativo, sendo muitas vezes apontado como uma referência fundadora da arquitetura temática e estética do género. A sua atualidade renova-se através de uma efeméride plena de simbolismo: estreado em outubro de 1941, dia 3 em Nova Iorque, dia 18 em todo o território dos EUA (só chegaria a Portugal em 1945), Relíquia Macabra é uma preciosidade com 75 anos de existência.
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Evocar Relíquia Macabra não é um mero gesto nostálgico, desligado das convulsões históricas. Podemos mesmo dizer que o filme de Huston passou a estar oficialmente inscrito na história cultural dos EUA quando, em 1989, foi escolhido para integrar o National Film Registry, o programa da Biblioteca do Congresso visando a preservação de filmes "significativos de um ponto de vista cultural, histórico ou estético".
Aliás, 1989 foi, justamente, o ano de fundação desse programa, com Relíquia Macabra a integrar uma lista de 25 títulos, a par, por exemplo, de Intolerância (David W. Griffith, 1916), Casablanca (Michael Curtiz, 1942) e A Guerra das Estrelas (George Lucas, 1977).
Sob o signo de Hammett
Dois nomes são essenciais na genealogia, e também na mitologia, de Relíquia Macabra. O primeiro é o de Dashiell Hammett, autor do romance que o filme adapta, lançado em 1930, recentemente reeditado no mercado português, na renovada coleção Vampiro (Livros do Brasil), com o título O Falcão de Malta (o título original do livro e do filme é The Maltese Falcon).
No seu centro está o detetive Sam Spade, personagem tecida de desencanto e pragmatismo, fino conhecedor da violência subterrânea das relações humanas, que se vê envolvido numa teia de morte e traição no centro da qual está essa peça de inusitado valor que é a estatueta do "falcão de Malta".
O segundo nome mítico associado a Relíquia Macabra é, obviamente, Humphrey Bogart (1899-1957). Através de filmes como Ruas de Nova Iorque (William Wyler, 1937) ou Heróis Esquecidos (Raoul Walsh, 1939), tinha criado um novo padrão de heroísmo, por assim dizer condensado nos traços do seu rosto: terno e cruel, um sobrevivente no labirinto de muitas máscaras e armadilhas.
Na companhia de brilhantes secundários como Mary Astor, Peter Lorre e Sydney Greenstreet, Bogart era o símbolo perfeito do star system - um sistema de produção que não dependia do endeusamento da técnica, fundamentando-se, antes de tudo o mais, na diversidade das figuras humanas.
Era a terceira vez que o romance de Hammett surgia transformado em filme, depois de The Maltese Falcon (Roy Del Ruth, 1931), com Ricardo Cortez no papel de Spade, e Relíquia Fatal (William Dieterle, 1936), com nomes diferentes para as personagens e Bette Davis numa das suas primeiras composições.
Em qualquer caso, foi o filme de Huston que ficou como marco incontornável do "filme negro". Entre os seus muitos herdeiros, podemos citar o notável Chinatown (1974), de Roman Polanski - para que o simbolismo seja perfeito, um dos principais papéis era interpretado por... John Huston.