Quando é que vamos acordar?
1. A actual pandemia proporcionou, e continua a proporcionar, a quem queira aproveitá-la, uma oportunidade única de reflexão holística sobre o que estamos a viver, a nível global: temos, de um modo geral, mais tempo para pensar, e o confinamento ou mesmo apenas a redução drástica da convivialidade física, convidam a mais leituras e consequentemente a mais cogitação interior.
Talvez, no fim de contas, não seja pior viver assim - menos condicionados pela voragem consumista, menos afectados por distracções sociais tantas vezes fúteis, menos dispersos em actividades de proveito discutível (e inevitavelmente com menos tempo para reflectir). O recolhimento pode estimular-nos para a análise do que verdadeiramente importa: quem somos e para onde (globalmente) estamos a ir.
2. A verdade é que este "parar para pensar" se está a tornar urgente, e de forma dramática. Os sintomas de crise grave, quiçá com força de derradeiro alerta, estão bem à vista para quem não ande distraído. E são de tal grau que a sua ignorância pode converter-se facilmente em atitude suicida colectiva.
3. Não estou a exagerar. Vejamos apenas alguns dos sinais mais alarmantes.
a) Destruição do planeta. As calotes polares derretem, a superfície florestal já vai em metade da que existia no século passado, os furacões multiplicam-se e são cada vez mais violentos, a variedade das espécies animais e vegetais reduz-se brutalmente (perda acentuada de biodiversidade), o clima descontrola-se. Não é insensato imaginar que, por este caminho, dentro de poucas décadas a vida humana deixará de ser possível na Terra. Esta continuará a girar e a conter vida - mas não a nossa (baratas e escaravelhos devem poder sobreviver nela quando os humanos já não o conseguirem). É muito estúpido saber tudo isto e não fazer nada, ou quase nada, para o travar.
b) Uso da inteligência artificial. Todos os cientistas do ramo (informática, robótica) estão de acordo em que o desenvolvimento da tecnologia está em crescimento exponencial (e não linear, quer dizer: não aumenta ao mesmo ritmo em cada ano, mas sim cada vez mais). E - o que é bastante pior - cada vez com menos controlo humano. A razão é simples: a partir do facto de os algoritmos tomarem conta dos processos (deep learning, computadores que aprendem sozinhos, desenvolvendo exponencialmente a sua capacidade de computação), a sua evolução - cada vez mais rápida - deixa de ser previsível, e até compreensível pelos seres humanos, inclusive pelos engenheiros informáticos que os criaram. Já não é exagero prever que dentro de duas ou três décadas se atingirá a famosa Singularidade: o momento em que a inteligência artificial suplantará a humana. Desconhece-se o que se lhe seguirá, mas não podemos ficar sossegados sabendo que inteligência, e a astúcia que lhe pode estar associada, é o primeiro passo para a tomada do poder - nesta matéria, com a ironia suplementar de serem os humanos a criar o acesso ao poder que acabará por os dominar. É demasiado perigoso saber tudo isto e não fazer nada para o impedir.
c) Estupidificação geral. A era da comunicação global tornou-se, infelizmente, a era da estupidificação geral: o esgoto das redes sociais é o seu veículo privilegiado. O engodo de proporcionar a cada um uma voz activa expôs a vaidade humana no seu pior: já quase ninguém se preocupa com a avaliação de se o que tem para dizer é interessante ou pertinente, o que interessa é ser lido/ouvido/visto. O efeito é catastrófico, pois a disseminação maciça da vulgaridade destrói o poder simbólico e inspirador da inteligência e da cultura, e fomenta a preguiça mental e a subordinação às emoções mais primárias. Produz-se assim uma multidão em crescendo (também exponencial) de pessoas embrutecidas e boçais, perto da acefalia - que depois naturalmente se convertem em "escravos" facilmente manipuláveis, acabando a eleger os Trumps e Bolsonaros que também crescem por este mundo fora. A democracia a ser minada a partir de dentro. É absurdo estar a assistir a isto e não reagir.
4. Não vai acabar bem. A menos que, miraculosamente, um surpreendente incremento da reflexão estimulada pelo relativo recolhimento actual desencadeie uma consciência global que conduza à urgente reacção de revolta e reorganização dos modos de viver e das políticas que eles requerem. Mas teria de ser concertada e sincronizada mundialmente, o que se afigura cada vez mais difícil e problemático...
Maestro, compositor e professor aposentado
Escreve usando a ortografia anterior ao AO 1990
[Leituras recomendadas:
- Tecnologia versus Humanidade, por Gerd Leonhard (Gradiva, Lisboa, 2018)
- O Mito da Singularidade, por Jean-Gabriel Ganascia (Temas e Debates / Círculo de Leitores, Lisboa, 2018)
- A Civilização do Peixe-Vermelo, por Bruno Patino (Gradiva, Lisboa, 2019)
- O Código da Criatividade, por Marcus du Sautoy (Temas e Debates / Bertrand, Lisboa, 2020)]