"A habilidade de Jonathan foi ver o concerto quase como uma peça de um grupo de teatro, em que as personagens e suas peculiaridades seriam apresentadas ao público. Assim se fica a conhecer a banda enquanto pessoas, cada um com a sua personalidade distinta.".São palavras certeiras as do vocalista David Byrne, por sinal a mais distinta personalidade dos Talking Heads, a prestar homenagem ao talento do realizador Jonathan Demme por altura da morte deste, no último mês de abril. Conheceram-se em 1983, depois de um concerto da banda no Hollywood Bowl, a que Demme assistiu, tendo descoberto nesse espetáculo da digressão Speaking in Tongues "um filme à espera de ser filmado", assim o disse. Teve olho imediato para a ficção contida na performance..E Byrne, por sua vez, também acreditou no potencial "cinemático". O resultado, traduzido em sons e imagens, foi este espanto: Stop Making Sense (1984), o célebre projeto que fez confluir uma rara inteligência artística à frente e atrás da câmara..Aquele que é tido como a referência máxima dos filmes-concerto está de regresso às salas nesta quinta-feira (disponível em DVD e video on demand a partir de 7 de setembro), para oxigenar a experiência cinematográfica deste verão. Ficar quieto na cadeira é uma missão perfeitamente impossível....[youtube:9dMpX7WUIlU].Tudo começa nas sapatilhas brancas de Byrne, a pisarem o palco do Pantages Theatre (Los Angeles), num passo ainda disciplinado, antes dos primeiros movimentos esdrúxulos ao som de uma versão acústica de Psycho Killer..Um início minimalista. Ele, personagem principal, de guitarra nos braços, enche o espaço com uma dança brilhantemente descoordenada, até à entrada da angelical baixista Tina Weymouth, para tocarem juntos o tema Heaven. O refrão diz que o céu é um lugar onde nunca nada acontece. Assumimos que o céu é aquele palco, a preencher-se de equipamento logístico e instrumentos, a deixar-se, enfim, invadir pelo acontecimento. Entretanto, o baterista Chris Frantz também já ocupou o seu lugar, assim como Jerry Harrison, o guitarrista. Mas há mais personagens neste espetáculo que é um crescendo, ou melhor, que se avoluma tal como o mítico fato de David Byrne... lá chegaremos..Filmado ao longo de três concertos, Stop Making Sense é, no entanto, um corpo indivisível, um raconto performativo que a lente de Jonathan Demme (então futuro realizador de O Silêncio dos Inocentes) torna uno, pela intimidade com que explora a gramática dos elementos em palco..Tal como dizia Byrne na citação que abre este texto, o realizador encontrou uma forma de ler o espetáculo como uma peça de teatro, e acrescentamos nós, consegue fazê-lo através de uma câmara que entra organicamente na coreografia, contaminada pela atmosfera vigorosa e dinâmica das músicas. Foi nesse sentido que este filme-concerto representou - e representa - o mais inovador trabalho dentro do género: sem truques baratos, o olhar de Demme é de uma magia discreta e ao mesmo tempo inquebrantável..Algo que não voltaria a repetir, no que à singularidade diz respeito, em Neil Young: Heart of Gold (2006) ou, mais recentemente, em Justin Timberlake + The Tennessee Kids (2016). Talvez porque a nota mais alta de Stop Making Sense esteja na ficção tácita e na consistência dramática e humana alcançada no diálogo estético com David Byrne. Um entendimento magnífico, que o cuidado do diretor de fotografia, Jordan Cronenweth (Blade Runner), ajudou a cimentar.."No palco tudo é maior".Mesmo quem nunca viu Stop Making Sense é provável que conheça a imagem de Byrne dentro de um fato muito largo, numa dança burlesca e desconjuntada, a cantar Girlfriend Is Better (música de onde é tirado o verso que dá título ao filme). A beleza enviesada dos seus movimentos nesse traje insuflado acabou por prevalecer como a imagem dos próprios Talking Heads, que não podiam senão render-se ao génio do vocalista, inspirado na tradição teatral japonesa..Com efeito, foi do Kabuki e do teatro Nô que veio a ideia do big suit, feito numa proporção semelhante à dos quimonos usados pelas personagens japonesas, cuja figura deve ser aumentada pelas vestes. Byrne, da frase ligeira de um amigo designer de moda - "no palco tudo é maior" - fez o lema para o espetáculo..E a verdade é que a grandeza de Stop Making Sense reside também na criatividade por detrás destes detalhes de performance, e dos planos justos e empáticos de Demme, à procura da energia musical do ensemble, naquela que considerava ser a forma mais pura de filmar: "Essa colisão louca de sons e imagens, a intensa colaboração." Não tenhamos dúvidas de que o seu filme nos guardou o melhor lugar na plateia.