Quando danças com o diabo

Não mudas o diabo; é ele que te muda a ti. Ao permitir comentários sem controlo nos seus sites, os media são portadores do vírus que dizem querer combater. Não há melhor caldo de cultura para as <em>fake news</em>.
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A primeira vez que pedi à direção do DN para fechar os comentários na minha crónica foi em 2010. Tinha escrito sobre uma iraniana condenada à morte por lapidação, por alegado adultério, e ao abrir o texto on line deparei-me com um comentário insuportavelmente ordinário. Há muito que me incomodava partilhar espaço com gente que o usava para tudo menos para comentar realmente o que eu escrevia; foi a gota de água.

Lembrei-me dessa minha fúria a semana passada, quando numa notícia sobre uma mulher que morreu após almoçar num restaurante de estrela Michelin encontrei isto: "Quem tem 85 euros [o preço do menu de degustação do estabelecimento] para pagar por uma refeição merece morrer de indigestão porque não o ganhou honestamente." Uma vez que os comentários no DN são feitos através do Facebook, tive a curiosidade de "entrar" no perfil da autora. Fiquei com a ideia de que nem sequer se trata do chamado "perfil falso" - será mesmo alguém com aquele nome que entendeu dizer, publicamente, tal barbaridade.

Como me pareceram reais a foto e o nome da mulher que no FB do DN, nos comentários a um post partilhando um texto meu sobre a denúncia de uma agressão homofóbica a duas jovens namoradas, escreveu "não são só lésbicas, mas também uma é negra e a outra parece mesmo judia." Ou o do homem que a propósito desse mesmo texto acusava as namoradas, o jornal e eu, autora da peça, de "fake news", porque, alegava, "não havia testemunhas do ocorrido" e uma das raparigas, que denunciara o caso no Twitter, "só tinha a conta aberta há quatro dias". Perante um trabalho jornalístico em que se citava a GNR, a qual informava que recebera a queixa e a enviara para o tribunal depois de identificado o alegado agressor - cujo nome, de resto, as jovens conseguiram saber através da polícia e me comunicaram, tendo eu tentado falar com ele --, e se procurara saber junto de um estabelecimento em frente do qual as denunciantes situavam o ocorrido se algum dos empregados vira alguma coisa, alguém considerara poder acusar o jornal de publicar uma notícia falsa baseando-se precisamente na tentativa do jornal de encontrar testemunhas e na certificação de que não conseguira.

É possível que a maioria das pessoas encolha os ombros: "É a internet", dirão. Ou a natureza humana; sobretudo a segunda. Sim, pode ser que, como diz a canção de Nick Cave, "people ain"t no good, I think that"s well understood" (as pessoas não prestam, estamos fartos de saber). E que a internet só tenha então a particularidade de permitir, com grande eficácia, darmo-nos conta disso, como se perante um ecrã e um teclado, por magia negra, a maldade se exercitasse. Pode ser.

Mas isso, que é um assunto bem interessante, não interessa muito para o meu ponto. Porque o meu ponto não é, aqui, o de saber por que raio as pessoas escrevem tais coisas, nem tão-pouco o de as impedir de fazê-lo; nem sequer o de deverem ser punidas por difundir aleivosias, difamações, calúnias, e "correntes de pensamento" como o ódio racial. Todas essas coisas sempre existiram e foram veiculadas, embora de modo geralmente sub-reptício (exceto, claro, nos períodos históricos em que a intoxicação pública pelo ódio e pela falsificação reinam, com os resultados conhecidos). Daí que haja e deva haver leis contra elas: porque existem; daí que devamos ter consciência de que a sua normalização é perigosa.

Mas se a difusão irrestrita que a internet lhes permite é já de si aterradora, se é patente que as pessoas que fazem comentários como os citados não temem qualquer consequência nem tão-pouco se envergonham do que dizem -- pelo contrário, fazem gala de o dizer, querem dar-lhe visibilidade, ou não o fariam em público --, que dizer de quem preste algum tipo de certificação a esse discurso, ou tente de alguma forma retirar benefícios da sua existência?

É que ao publicar nos seus sites e FB, sem qualquer filtro ou mecanismo de controlo, comentários como os descritos - e piores --, os chamados "media tradicionais", os jornais, rádios e TV, estão a colaborar na normalização acelerada da falsificação, da calúnia e do ódio. De cada vez que alguém é caluniado, ou ameaçado, ou alguém destila ódio nos comentários a notícias de um jornal ou no respetivo Facebook é esse jornal que está a veicular essa calúnia, essa ameaça, esse discurso de ódio, a validá-los com o seu carimbo, a acolhê-los sob a sua marca.

Não sou jurista; admito que em tribunal se possa ter dúvidas sobre a responsabilidade criminal e civil que esse comportamento acarreta. Mas do ponto de vista ético e deontológico não vejo como ter alguma. Até porque a existência de comentários nos sites e no Facebook de meios de comunicação visa "gerar tráfego", ou seja, proveito.

Combater as fake news deveria começar por aí: porque todos os media que permitem que os seus sites e FB sejam um festim de ódio, acusações falsas, devassas, ameaças, racismo e quejandos estão a contribuir para o ambiente em que elas, as fake news, medram e se tornam indistinguíveis, para parte do público, do jornalismo. Se está tudo no mesmo sítio, distinguir como?

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