A movida madrilena é um fenómeno da década de 80 e da transição democrática mas, como vemos na série "Arde Madrid" transmitida aos domingos na RTP2, teve a sua antecâmara nos anos 50. Franco continuava a ser o todo-o-poderoso Caudillo de Espanha, mas o isolamento a que a Guerra Civil (1936-1939) votara o país, começava a ceder. Para escândalo dos mais conservadores, Ava Gardner e Orson Welles, entre outras celebridades internacionais, instalaram-se na cidade e mostraram às gentes outros hábitos, bem mais livres..Consciente de que importava ir vendendo ao mundo, nomeadamente aos norte-americanos, uma imagem de Espanha mais aberta e moderna, o ditador foi ignorando as vozes escandalizadas de homens como o ex-presidente argentino, exilado em Espanha, Juan Domingo Péron, ou do abade do Vale dos Caídos. O que poucos esperariam, porém, é que essa tolerância se tivesse estendido, em 1959, a Che Guevara, que, ao longo desse ano I da revolução cubana passou várias vezes pela capital espanhola, nas duas primeiras com uma aparente liberdade de movimentos..Fardado, com a boina que se tornaria parte da sua imagem de marca, o então diretor do Instituto da Reforma Agrária de Cuba passeou pelas ruas, deu autógrafos e tirou fotografias com populares sorridentes..Che rumava ao Egito, onde devia reunir-se com o Presidente Nasser, mas passou por várias capitais europeias em busca de simpatias para o novo regime cubano. Apesar das diferenças ideológicas, os laços criados pela História e língua comum, mas também pelo comércio entre ambos os países, tornavam Madrid uma escala obrigatória..Aos homens de Franco importava apenas que Che não tentasse contactar a oposição espanhola, nomeadamente o Partido Comunista. Vigiado embora pela polícia política, chegou a 13 de junho e deixou-se guiar pelo jornalista António Olano, entretanto contactado pela Embaixada de Cuba para o efeito, e foi fotografado pelo jovem repórter da Europa Press, César Lucas, nos vários locais que quis visitar: a Faculdade de Medicina da Universidade Complutense (área em que se licenciara, ainda em Buenos Aires), a praça de touros de Carabanchel e, naturalmente, a mais animada artéria de Madrid, a Gran Vía, onde vários populares o abordaram, ansiosos de tirar uma fotografia sorridente ao lado da celebridade. Foi ainda a um restaurante da Casa de Campo provar o tradicional polvo à galega..Graças aos bons ofícios de Olano, Che teve mesmo um tratamento de exceção. Se a praça de touros de Carabanchel se abrira especialmente para o viajante em boa parte devido às simpatias pró-comunistas do proprietário do recinto, Domingo Dominguin (irmão do famoso toureiro Luis Miguel Dominguin), o mesmo aconteceria, mas por razões diversas, com as Galerias Preciados, encerradas nesse dia, que era um domingo. Sabendo que o dono do maior estabelecimento comercial de Madrid, José Pepín Fernández, tinha um amor particular por Cuba, onde fizera a sua fortuna, Olano fez um telefonema:.-Don Pepín, tenho que pedir-lhe um favor. Uma pessoa vinda de Havana necessita de fazer compras ao domingo porque deixa Madrid hoje mesmo. É Che Guevara..A resposta não se fez esperar. À espera deles estariam dois empregados designados por Don Pepín. De acordo com o testemunho dos jornalistas, Che terá adquirido material de fotografia, uma máquina de escrever portátil, artigos de higiene pessoal e dois livros..Devido a uma escala técnica do avião em que viajava, Che estaria de volta a Madrid, menos de três meses depois. Voltou a sentir-se à vontade para ir à tourada e para viajar até Toledo, onde, uma vez mais, acederia a deixar-se fotografar na companhia de outros visitantes da histórica cidade de Castela La Mancha, que, por sua vez, não se mostravam receosos de serem vistos em tão revolucionária companhia. .A aparente tolerância de Franco para com estas nada clandestinas excursões de Che em território espanhol não é ocasional nem pode ser confundido com um gesto de boa vontade. Em 1959, as simpatias do regime cubano pelo comunismo eram conhecidas mas Fidel de Castro mostrava-se ainda relutante em cair nos "braços" da União Soviética (o que levava Che ao Cairo e ao encontro com Nasser, líder dos chamados países não alinhados com qualquer dos blocos dominantes, Estados Unidos ou URSS)..Ao contrário do que acontecera com Perón, Fulgêncio Batista, o ditador deposto pela revolução a 1 de janeiro de 1959, não receberá qualquer manifestação de apoio quer dos Estados Unidos, quer de Espanha, que lhe recusarão terminantemente os pedidos de asilo político que este faz para si e para a sua família. Receosos de prejudicar as excelentes relações comerciais com a ilha, americanos e espanhóis persuadirão o governo português a acolhê-los. A contragosto, Salazar acede, mas evitará qualquer familiaridade e procurará mantê-los tanto quanto possível, limitados ao Funchal. Toda esta situação se alterará em 1961, com a tentativa de invasão da baía dos porcos e a subsequente crise dos mísseis, em outubro do ano seguinte.