Quando Champalimaud 'regressou' do Brasil só com nove letras...
O grafismo de um jornal também exprime o seu posicionamento ideológico e a estratégia editorial. Funciona como instrumento para o cumprimento de determinados objetivos. Que o digam os jornalistas do DN que trabalharam nesta casa a seguir ao 25 de Novembro e em especial após a vitória do PS nas legislativas de 1976.
Os novos responsáveis do jornal vieram com intenções de lhe impor sobriedade, rigor e isenção - e fazer sair o jornal do centro do furacão das polémicas político-partidárias, para dizer o mínimo. O resultado acabou por ser um jornal mais espartilhado e contido. Mais sólido em matéria de rigor, mais sustentado - mas menos vivaz e palpitante. Cinzento é a palavra. O espartilho maior estava nos títulos, em especial os da política, que não abriam espaço a concessões ou exceções. Uma maior criatividade era já permitida nas reportagens e no desporto. Mas a primeira página e as seguintes (as da política) eram vistas à lupa e com regras blindadas.
Era ainda o tempo do jornal em broadsheet, a página imensa que ocupava toda a mesa do café - e sobrava, quando se folheava. Os títulos tinham de ter duas linhas do mesmo tamanho e podiam incluir antetítulo e pós--título. (Apenas os títulos a uma coluna impunham quatro linhas a corpo 24.) Havia três corpos de letra: 48, 36 e 24, hierarquizados pela posição, ao alto, ao meio ou ao fundo da página. Como a composição era ainda a chumbo, não havia flexibilidade para aumentar ou diminuir disfarçadamente o corpo de letra para efeitos de cabimento: no máximo, eram tolerados os corpos 44 e 32, se não me falha a memória. Com a prática, já sabíamos quantas letras cabiam em cada linha de título, conforme o corpo e o número de colunas.
Não ficavam por aqui as normas: as duas linhas do título tinham de conter o verbo na forma ativa e exprimir toda a ideia da notícia - não podia ser chamariz de leitura. Também não podia o título ficar dependente do antetítulo ou do pós-título: se alguém dizia alguma coisa, tinha esse alguém de estar no título. Dou um exemplo que ainda trago fresco na memória, acontecido comigo duas semanas depois de entrar no DN: aconteceu a 19 de maio de 1982, notícia no dia seguinte. Álvaro Cunhal tinha falado na evocação da morte de Catarina Eufémia, em Baleizão e, do discurso que me chegou, uma frase saltou-me aos olhos: "Este governo é um escalracho do regime e tem de ser arrancado." Saborosa frase para título. (Fui primeiro ver ao dicionário o que significa a palavra, que nunca a tinha ouvido, embora deduzisse. O leitor, se não sabe, também tem de lá ir: trabalho para casa - TPC...) Lá fiz o título: "Governo é escalracho do regime e tem de ser arrancado" e, em pós-título "- disse Álvaro Cunhal em Baleizão, etc."
Um dos chefes temia que o título "não passasse", por ser "muito forte". Eu, que tinha vindo dessa pátria de repórteres que era o jornal A Capital, não fazia ideia do que era um título "não passar por ser forte": se fosse "fraco" é que levava rabecada do chefe...! O título "passou". Mas dentro das regras: "Cunhal considera Governo escalracho do regime." Duas colunas. O meu chefe é que tinha mecanismos de autocontenção a mais. Afinal, já tinham passado sete anos sobre o 25 de Novembro...
Mas como fazer quando uma notícia continha um contraditório de opiniões? Como dizer que um achava uma coisa e outro era da opinião contrária? Privilegiar um no título e dar o contraditório no pós-título? Cairia o Carmo e a Trindade por causa da escolha. Avançava a lei do menor esforço: sai um "gera polémica" para aquele título! Revisão constitucional ao rubro? "Gera polémica." Partidos em guerra por causa do Orçamento? "Gera polémica." Era assim - e não era bom.
O problema maior surgia quando a "ditadura das batidas" (o número de letras a caber em cada linha de título), não deixava saídas. Caiu-nos certo dia na redação que António Champalimaud ia voltar ou estava em discussões para regressar do Brasil. Achávamos, na secção de Política, que era notícia para ser chamada à primeira página. Lá foi o chefe propor. Voltou com a informação de que o diretor concedia uma coluna na primeira a tão controversa personagem. Uma coluna? Corpo 24? Máximo nove batidas! Champalimaud tem 12, não cabe. Sugerimos ao chefe: "Pergunta lá ao diretor se podemos escrever Xampalimô, que já cabe..." O diretor teve de conceder duas colunas. Não sei se qualquer um de nós gostava propriamente de Champalimaud - mas ficámos episodicamente unidos por causa da tenebrosa "ditadura das batidas"...
A evocação daqueles tempos surgiu-me com um título de primeira página do DN publicado nos primeiros dias de julho e para o qual fui alertado pelo leitor Antero Rodrigues:
"Venho por este meio chamar à atenção para a forma como é tratado o deputado do PTP na chamada à primeira página da edição de hoje do DN, onde José Manuel Coelho é identificado simplesmente como 'Zé Manuel Coelho'. Ora, mesmo não sendo eu da área política do cidadão em causa, considero desprimoroso o uso do diminutivo 'Zé' neste caso. Em primeiro lugar, porque nem no seu círculo de amigos e/ou família nem na política regional ou nacional, José Manuel Coelho é conhecido por 'Zé'. Em segundo lugar, porque o DN não trata por 'Zé' nenhuma outra figura pública, a não ser, talvez, o Zezé Camarinha ou o Zezé Beleza. Em terceiro lugar, depois das asneiras que o DN inseriu ontem na notícia da edição online sobre a expulsão do José Manuel Coelho da cerimónia oficial do Dia da Região Autónoma da Madeira e dos consequentes reparos dos leitores, o diminutivo 'Zé' pode soar a pequena vingança contra quem fez relevar os vossos lapsos. Por isso, mutatis mutandis, termino com uma fórmula usual no Senhor Provedor: os senhores diretores/editores do DN gostariam que tratassem o vosso paizinho por 'Zé'?"
(Leitor atento, este, a quem fico obrigado: na verdade, tenho usado, na simplificação do raciocínio ético, aquilo a que venho chamando o "paradigma da Mãezinha - tratar todas as pessoas como gostaríamos que fosse tratada a nossa querida, adorada, idolatrada e nunca por demais gabada Mãe". E continuo a achar uma boa regra.)
"Zé Manuel Coelho/expulso das festas/do Dia da Madeira." Uma coluna, três linhas de título. Em primeiro lugar, a "ditadura das batidas" já não é o que era e há muito mais soluções gráficas. Em segundo, a pequena notícia de chamada tinha foto, pelo que, não cabendo o nome, poderia identificar-se o protagonista pela função. A ideia de transformar José em "Zé" foi desastrosa e isso mesmo foi reconhecido pela Direção do jornal quando solicitei esclarecimentos: a "invenção" passou despercebida a uns quantos pares de olhos - e saiu disparate. (E o curioso é que há provavelmente mais simpatia na redação por José Manuel Coelho do que havia então por António Champalimaud...)
Outras esquivas à ditadura das batidas resultam patuscas. Foi o caso de um título numa página dedicada à Igreja de Santo António, perto da Sé. Aproximava-se o dia deste santo que, não sendo padroeiro "oficial" de Lisboa - é São Vicente - assim foi adotado pelo povo, como explica a olisipógrafa Marina Tavares Dias em Lisboa Misteriosa. Um título secundário, em baixo, dizia: "Templo está onde nasceu António". António? Qual? O Toni? Não, o Santo António. Já aqui escrevi que, nesta matéria, há que evitar ruídos na comunicação e chamar António a Santo António é unha a raspar na caliça.
Poderá argumentar-se que, quando nasceu, ele ainda não era santo. Pois, mas muito menos era António: chama-se Fernando de Bulhões. Mas " O templo está onde nasceu Fernando" seria ainda mais enigmático. Com certeza que haveria soluções gráficas para evitar um título tão insólito - e isso foi reconhecido pelo editor executivo adjunto, Gonçalo Pereira.
Onde Gonçalo Pereira parece não concordar comigo é noutra notícia, na mesma edição de dia 8 de junho, na página 12, que titulava: "Isaltino Morais critica combate à corrupção." Um título destes, relacionado com uma personagem tão publicamente envolvida em questões de alegada (se não comprovada) corrupção sugere um comentário imediato: Pudera!
No entanto, lendo a notícia, fica a saber-se, logo no primeiro parágrafo, que o autarca de Oeiras, entre outras críticas, verbera o combate à corrupção "em praça pública". Faz muita diferença criticar o combate à corrupção e criticar o combate à corrupção feito em praça pública. A primeira deixa-nos perplexos e a segunda subscrevemos todos, penso eu. Por isso, entendi o título como ilegítimo e interpelei a Direção do DN.
Respondeu-me por ela Gonçalo Pereira: "O título 'Isaltino Morais critica combate à corrupção' é uma síntese daquilo que o presidente da Câmara Municipal de Oeiras disse. O problema a que o autarca aludia era ao de o combate à corrupção em Portugal, muitas vezes, ser feito em dois palcos diferentes: aquele onde é suposto ele decorrer, que são os gabinetes dos investigadores e as salas dos tribunais, e outro, onde ele acaba por também cair, que é a praça pública. Isaltino Morais diz que é assim que as coisas se passam, mas não devia ser. O combate à corrupção, quando é bem feito, desenvolve--se nas sedes próprias. Daí a formulação do título da peça [...] De qualquer forma, logo a seguir, o primeiro parágrafo da notícia apresenta a ideia na sua versão absolutamente clara e completa."
O título não é uma síntese do que Isaltino Morais disse: uma síntese condensa todos os elementos essenciais, não deixa ficar de fora. Quando um elemento fica de fora, não é síntese, é deturpação. O facto de o primeiro parágrafo da notícia esclarecer não absolve o título: dececiona o leitor que comentará, rilhando os dentes, "podiam ter dito logo", ficando a ruminar umas quantas coisas sobre o jornalismo - e com razão.
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