Quando as portas se fecham e o museu se maquilha

O Museu dos Coches reabre ao público no sábado com toda a informação que lhe faltava desde 2015. A entrada é livre.
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Implementação do projeto museográfico. O nome, pomposo, justifica o encerramento do Museu Nacional dos Coches, o mais visitado do país, para terminar o que ficou pendente quando o edifício do brasileiro Paulo Mendes da Rocha, prémio Pritzker, em parceria com o português Ricardo Bak Gordon, foi inaugurado a 23 de maio de 2015: dar informação e contexto a esta coleção de carros reais e outras joias do tempo em que os veículos não tinham motor.

Primeiro dia: limpeza geral de elementos estranhos. As portas fechadas escondem a agitação que vai lá dentro enquanto se retiram os pilaretes móveis que rodeavam cada coche. Pouco mais existia que orientasse o visitante pela coleção.

Caixas de cartão, empilhadas a um canto guardavam os novos módulos brancos que, uma vez encaixados, formam molduras em torno das peças do Museu dos Coches. O arquiteto Nuno Sampaio, a metade portuguesa na autoria do projeto expositivo, com Paulo Mendes da Rocha, Pritzker em 2006, explica a sua dupla função. "Para servir de proteção e para dar informação". Cada coche, ou núcleo, foi munido de um ecrã tátil, através do qual se descobrem as múltiplas facetas da peça.

O projeto expositivo do museu existia desde 2012 e estava em falta desde a sua inauguração, a 23 de maio de 2015, o dia em que completava 110 anos. Adiamentos sucessivos, incluindo uma autorização do Tribunal de Contas, empurraram a conclusão desta parte do projeto para este ano (só ficará a faltar a ponte pedonal ainda sem data de conclusão). A reabertura, no sábado, coincide com o fim de semana em que se celebra o Dia Internacional dos Museus. A 19, às 18.00, o ministro da Cultura, Castro Mendes, e a diretora-geral do Património Cultural, Paula Silva, reabrem a instituição.

"Há acertos, por causa desta espécie de molduras, mas a exposição é a mesma", afirma a diretora do museu, Silvana Bessone. "As pessoas às vezes não percebem que estão em cortejo, como fazia a casa real", explica, a pensar naqueles que sentem saudades dos carros "estacionados" em espinha como acontecia nas antigas instalações do museu, enquanto passeia pela nave.

O caminho é cronológico e a história começa com a carruagem de Filipe II, III de Espanha, trazida de Madrid quando o rei visitou Portugal em 1619. É o exemplar mais antigo da coleção, do século XVII. O conservador Pedro Beltrão, que vai documentando todas as alterações para o arquivo da casa, levanta os assentos do coche (palavra derivada de Koc, a cidade húngara onde começaram a ser fabricados), mostrando a sua peculiaridade: uma espécie de sanita que a cabeça coroada poderia usar durante a viagem. Um pormenor impossível de ver, pois os visitantes não podem entrar nos veículos, mas que estará na informação tátil, uma viagem de 360º por estas raridades.

Nuno Sampaio mostra a informação preparada para outro exemplar do museu. "Tem várias leituras", começa, chamando a atenção para as decorações e para os bancos forrados de veludo, gasto pelo tempo e pelo uso. As imagens pretendem realçar esses aspetos. Há informação para quem gostar mais da iconografia, dos detalhes técnicos ou da História. Há detalhes do funcionamento da suspensão e, ao longo da mostra, outras inovações tecnológicas. Obsoletas hoje, eram de ponta à época. Correm-se as páginas e encontra-se o desenho original do coche, "que se foi buscar à Biblioteca Nacional".

Uma projeção de 30 metros de comprimento envolve os objetos. As imagens vão passando na parede e são acompanhadas, a espaços, daquilo que Nuno Sampaio designa de "chuva sonora". Elementos que pretendem adicionar contexto aos objetos. Por exemplo, o som do rodado de um coche na calçada.

O desenho da exposição é rígido e só admite uma variação: a presença ou ausência do carro que ficou conhecido como Landau do Regicídio, um carro de passeio do fabricante português J. F. Oliveira. Preenchendo o vazio deixado pelo Landau, Silvana Bessone estudava a hipótese de mostrar, no mesmo espaço, o primeiro carro que se viu em Portugal, um Panhard et Levassor. "É igual a um destes coches", comparando com outros carros do final do século XIX. "Os cavalos passam para dentro do motor".

Quando ao Landau, há de estar de regresso ainda este ano, mas não a tempo da reabertura do museu, confirmou ao DN Silvana Bessone, cerca de duas semanas antes da reabertura, em plenos trabalhos no museu.

Para já, o veículo pode ser visto no núcleo de Vila Viçosa do Museu dos Coches, respeitando um acordo de comodato celebrado em 2015, entre este museu da Direção Geral do Património Cultural e o então presidente da Casa de Bragança e atual Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, segundo o qual o histórico veículo está um ano em Lisboa, outro em Vila Viçosa. Para já, "fica na televisão", afirma Silvana Bessone.

O carro estava no inventário do Palácio das Necessidades e depois passou para o Palácio da Ajuda, que o entregou em depósito, há anos, ao Museu dos Coches. A mudança não foi aceite de forma pacífica por todos. "Houve um movimento muito forte, até internacional, defendendo que devia ficar aqui, porque ele é da Ajuda e estava depositado desde sempre aqui", diz uma fonte que pede anonimato referindo-se ao veículo onde seguiam D. Carlos e o príncipe herdeiro, D. Luís Filipe, quando foram mortos, em 1908.

O núcleo de Vila Viçosa do Museu dos Coches, liderado por Maria de Jesus Monge, integra um acervo de características mais rurais. Por exemplo, é lá que pode ser visto o segundo charabã, uma carruagem destinada a quem vai assistir à caçada (a que está em Belém foi encomendada para a rainha D. Maria II). "Cada caçador tinha o seu carro", guia Silvana Bessone, mostrando o dog car, uma viatura mais pequena, onde, sob os assentos, se deitavam os cães. "É o único na nossa coleção". Aponta para as frestas laterais: "Respiravam por aqui." Eram eventos com pompa e circunstância, que exigiam a presença de músicos, confirmam as trompas douradas, que se exibem numa das 16 vitrinas do museu.

Aqui se expõem objetos que acrescentam histórias à História. Botas de grandes dimensões que acomodavam os pés, calçados, dos cocheiros, ou uma cama de campanha saída de um baú, ambos do século XVIII. Objetos que fazem parte do "enxoval" dos coches, como as fardas dos acompanhantes ou as trombetas da corte com as armas do rei D. José.

No novo desenho expositivo, aparecem também duas pinturas. Um retrato do marquês da Fonte, Rodrigo de Sá Menezes, representante de Portugal em Roma na embaixada ao Papa Clemente XI, e uma vista de Lisboa anterior ao terramoto, depositada recentemente no Museu dos Coches pela Fundação Millennium Bcp, onde se pode ver como era um cortejo de coches na primeira metade do século XVIII. Foi a pensar nessas filas alinhadas de viaturas que Silvana Bessone desenhou a exposição como os quase 400 mil visitantes a veem. Cada um recebe luz direcionada que procura salientar o mais especial de cada um. Por exemplo, iluminar o coupé setecentista que pertenceu aos Meninos de Palhavã, filhos naturais de D. João V. "As pessoas ligam coupé aos carros de dois lugares, mas vem daqui, a caixa do coche está cortada ao meio", conta a diretora.

A segunda nave do museu põe lado a lado os coches do século XVIII, "cheios de flores", e os do XIX, negros, austeros. "Começa a industrialização, começam a aparecer as marcas", regista Silva Bessone. Os últimos exemplares, que funcionaram depois de 1910, entrada na República, denotam a mudança de regime. O escudo foi pintado por cima das armas.

Ao centro, um conjunto de carros de criança, mais próximos do que antes. Um exemplar ficou fora da exposição permanente. "Temos lá em baixo um depósito muito engraçado de um carrinho de criança dos Açores, puxado por uma cabrinha, tinha piada, mas estamos condicionados por esta museografia. Foi assim a opção, agora temos de ir até ao fim e depois um dia se verá", explica Silvana Bessone.

Porém, ao contrário de antes, objeto guardado não é objeto escondido. As reservas, no piso térreo do Museu dos Coches, podem ser vistas através de um vidro, e, no futuro será possível, por marcação, visitá-las. A diretora aponta para outubro o início destas entradas.

Este percurso permitirá ver as mais recentes incorporações do Museu dos Coches, um conjunto de viaturas de época que pertenciam à Câmara Municipal de Lisboa. "Há cadeirinhas, berlindas e uma carruagem muito bonita e muito importante, um modelo diferente", refere Silvana Bessone. "Algumas seriam da própria câmara, do princípio do século XX, da Primeira República, está lá um exemplar de vidro, de um desfile histórico dos anos 40", situa. Alguns pertenciam às igrejas de Lisboa e foram guardados pela autarquia num armazém em Marvila. "Estamos a tratar deles", conta. São cerca de dez novas entradas na lista de viaturas do Museu Nacional dos Coches. Do conjunto recebido, dois foram para Vila Viçosa, "porque eram rurais".

Oito exemplares permanecem no antigo museu, o picadeiro real, aquele que a rainha D. Amélia, mulher de D. Carlos, converteu em museu, para "acabar com as poucas-vergonhas", reza a história. "Ao todo temos 78", contas da diretora. "Com os que estão em reserva 80 e tal, e com os de Vila Viçosa cento e tal". O inventário do Museu dos Coches lista mais de 7 mil peças e 48 são tesouros nacionais. Coches reais, mas também objetos únicos como as maças de prata do século XVIII usadas pelos porteiros da Casa Real nos cortejos régios.

Continuam a receber depósitos. "Reencaminho para Vila Viçosa ou para Mafra. A Tapada também tem uma coleção engraçada", afirma, referindo espaços com ligação ao Estado português. "Agora é que começamos a dizer que não temos espaço."

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