Quando as mulheres me puseram no lugar

<div>Foi exactamente há cinquenta anos, lembro-me como se fosse hoje. O twist nasceu e eu deixei de ser o macho dominante.</div> <div> </div>
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Passou-se muitos anos depois do que vos quero contar. Mas ela coroa a minha história: é a cena de dança mais bela da história do cinema (da minha história do cinema, claro). Eles descalçam-se, ficam frente um ao outro, a música começa e eles entregam-se - cada um a si próprio. Esse o facto, um facto enorme, revolucionário (fez mais pelo nosso avanço do que todos os partidos de Lenine). É uma dança de salão mas o homem não conduz, nem lidera. Ele e ela são iguais. Ou, até, talvez ela seja mais igual do que ele. Antes de soar e ouvir a guitarra e a voz de Chuck Berry, quando o apresentador pede concorrentes para o mais célebre concurso de dança de twist do mundo (tudo na América é maior do mundo: até Reno é a maior cidade pequena do mundo), os dois dançarinos estão sentados. E é ela, Mia (Uma Thurman), quem grita a aceitar entrar no concurso. Ele, Vincent (John Travolta), diz que não. Mas ela impõe-se, o que permitiu que esteja eu onde estiver, num quarto de hotel, num café, a passar por uma montra, se aquela cena de Pulp Fiction se repete num televisor eu fico com os olhos vidrados durante os 2m e 21s que demora a dança. Os minutos mais curtos do cinema.Pulp Fiction foi filmado em 1994, conta uma história contemporânea a essa década, mas a mulher que ao lado do apresentador mostra o troféu do concurso, uma loura de vestido branco plissado, uma autêntica falsa Marilyn, remete-nos para o começo do revolucionário twist. Faz cinquenta anos no próximo 16 de Junho que um negro com cara de bom rapaz e carapinha puxada a brilhantina (na época a mais famosa era da marca Brylcreem) gravou Let"s Twist Again. O cantor chamava-se Chubby (rechonchudo) Checker, nome artístico em homenagem à já então lenda do rock and roll Fats (Gordos) Domino. Mais do que para ouvir música, o disco de 45 rotações chamava para a dança. Chubby Checker explicava-a: «Façam de conta que, saídos do chuveiro, estão a limpar as nádegas com uma toalha, ao mesmo tempo que tentam, com os dois pés empurrar uma beata.» Em 1961, um disco, pondo-nos a dançar sozinhos frente ao parceiro (a primeira dança pela igualdade dos géneros) cometia uma revolução sem o saber.Na verdade, tal como o título da canção indicava, Vamos Dançar o Twist Outra Vez, o disco era uma repetição. No ano anterior, Checker tinha lançado The Twist, e por isso a letra do novo disco lembrava: «Vamos twist (mexermo-nos, torcermo-nos) outra vez/ Tal como fizemos no último Verão...» Mas era o mesmo que, também por esses anos, tinha acontecido ao Benfica: já tinha sido campeão europeu (3-2 ao Barcelona) mas só da segunda vez, no ano seguinte, convencera (5-3 ao Real Madrid). A minha cidade era provinciana e pacholas, mas talvez de todas do império português a que recebia mais cedo as novidades cosmopolitas. Em Luanda, logo no cacimbo de 1961, que correspondia ao Verão americano e europeu, alguém deve ter trazido o 45 rotações de Chubby Checker para as festas das férias grandes. Não gostei mas formou-me o carácter. Eu estava na pré-adolescência e, confesso, preferia os slows ou até os rocks que apesar de rápidos eram para dançar agarradinhos - eram momentos de emocionante educação sexual. O twist foi uma ruptura, até no sentido etimológico da palavra. Entre mim e a rapariguinha que eu tinha ido buscar para dançar fazia-se uma interrupção, um corte, uma descontinuidade. Deixávamos de nos tocar. E francamente, nunca tendo sonhado ir trabalhar para a companhia de Maurice Béjart, se não era para sentir o quente de uma mão feminina, o embaraço de coxas que se cruzavam, a suspeita de mamilos suaves, não percebia o sentido de dançar.Mas aprendi mais. Com o twist, as meninas deixaram de estar sentadas na cadeira à espera do convite. Saltavam para a pista (que geralmente era numa garagem de quintal) e punham-se a menear sem mesmo me esperar, como Uma Thurman mais tarde faria por Travolta. Pior, dançando eu com uma, passando a toalha e empurrando o cigarro no chão, vi-a por vezes a afastar-se (pois nada de mim a segurava) para dançar sozinha ou com outro. Mais tarde outras mulheres me puseram no lugar. Mas tudo começou sob o hey, let"s twist again.

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