Estava-se perante uma grande vaga de descolonizações, que se acentuou, sobretudo, em 1960, mas desde 1959 que se previa que pudesse haver uma sublevação em qualquer uma das colónias portuguesas", contou ao DN o investigador jubilado do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa Valentim Alexandre. Este é o contexto em que decorre o período abordado pelo historiador no seu mais recente livro, No Fio da Navalha, entre abril e novembro de 1961, um momento de grande tensão para a ditadura.. O ambiente internacional já era de pressão para que o sistema colonial deixasse de o ser, insistindo na libertação total das colónias. Como o historiador sublinhou ao longo desta conversa, Portugal, em 1951, tinha feito uma revisão da Constituição "para acabar com essa terminologia" e passar de "império colonial" para "províncias ultramarinas". Portanto deixa de haver colónias e, a partir daí", a título de exemplo, "é possível, do ponto de vista legal, deixar de haver empresas que se chamavam de "navegação colonial". Tiveram de mudar de nome porque não havia colónias", pelo menos no discurso do governo. "Isto é um subterfúgio", ilustra o historiador, acrescentando que "havia uma ideologia por trás que dizia que Portugal, como não tinha começado a fazer colonização no final do século XIX, como aconteceu com grande parte de África e com outros países colonizadores, era uma nação multicontinental desde o século XVI", o que diluía e, do ponto de vista do poder, dava legitimidade ao processo..No que diz respeito a colonialismo, 1960 é o ano da mudança no plano internacional, mas sem eco em Portugal, apesar de ter começado na Ásia logo após a Segunda Guerra Mundial. "É o ano da descolonização de quase todas as colónias francesas em África e é o ano em que na Assembleia-Geral da ONU [Organização das Nações Unidas] passam a predominar os votos dos países que tinham sido colonizados", lembra Valentim Alexandre. É nesse momento que também começa a ser evidente que em muitos países africanos há movimentos de autodeterminação dos povos, o que contrasta com as "províncias ultramarinas" portuguesas, cuja administração não pertence às populações. "Ser país detentor de colónias até 1960 é uma coisa que é legal do ponto de vista internacional", continua o historiador, alertando que "deixa de o ser a partir de uma célebre resolução, a n.º 1514, na 15.ª Assembleia-Geral da ONU, onde se propõe que as colónias deixem de existir. Portanto, a partir daí Portugal está ilegal do ponto de vista internacional".. Na "metrópole", como Portugal era designado na altura, por oposição ao ultramar, a existência de colónias passava como algo normal para a maioria da população, como se fizessem parte de uma vasta nação que abarcava vários continentes, da Ásia a África, até à Oceânia. Mas os povos não eram, para todos os efeitos, portugueses. "A primeira coisa que desmentia esta teoria era o facto de as populações serem indígenas, portanto não serem portuguesas", descreve. "Não tinham os direitos como os portugueses assimilados", afirma o historiador, introduzindo um conceito novo, relativo a populações que outrora tinham sido indígenas mas já não o eram do ponto de vista cultural e legal. "O número de assimilados, por exemplo, em Angola era menos de 1%", sustenta, aludindo a uma altura em que "se dizia que Portugal estava em Angola há 400 anos, o que era falso". Quando se fala em Angola, na fase inicial, fala-se da colonização no litoral. "O interior só foi ocupado em finais do século XIX", recorda. "Só 10% de Angola é que estavam ocupados antes, 90% foram-no depois. Portanto, eram populações que nunca tinham visto um português ou ouvido falar português. Não estavam incorporadas em quaisquer instituições portuguesas".. Antes disso, em 1941 "a Igreja tenta fazer a ponte entre nacionalismo e assimilação", através do Acordo Missionário, mas "menos de 1% da população era assimilada". "Como é que isto podia ser uma província como as outras?", questiona de forma retórica Valentim Alexandre, evocando "o Minho ou Trás-os-Montes". "Não era. Era uma coisa completamente diferente e, portanto, isto era um subterfúgio. Do ponto de vista internacional ninguém ligava nenhuma, era uma ideia que era completamente posta de lado por toda a gente.". Na altura, o chefe do governo, o Presidente do Conselho, António Oliveira Salazar, quando este processo de insurreição começa, "não está apenas a tentar tapar buracos, tem um gravíssimo problema de sobrevivência" do regime, revela o especialista. Assim, as várias missões militares "começaram a fazer uma revisão de todo o processo de defesa de qualquer dessas zonas", continua o historiador, acrescentando que "desde 1959 havia esse problema em vista. Depois, em 1961, quando ainda esse processo de revisão militar não estava terminado, começam os problemas no Norte de Angola: primeiro, com a chamada Revolta da Baixa do Cassange, no Nordeste de Angola. Depois, a 4 de fevereiro, em Luanda, com um assalto às prisões e outros edifícios públicos, que tem uma grande intensidade, por grupos de africanos armados apenas com catanas". Acaba por ser completamente resolvida nessa altura. Depois, a 15 de março, acontece a insurreição. "É a partir daqui uma situação que se desenvolve de tal maneira que o Norte de Angola, quando se está em abril, mês de arranque do livro, está completamente destruído. Toda a máquina burocrática e militar, numa área maior do que Portugal continental, está ocupada por uma grande insurreição, que faz desaparecer quase praticamente todo o aparelho militar na zona. Os colonos reúnem-se em certas zonas mais protegidas, sobretudo em Carmona. Uma grande parte deles foge para Luanda ou é depois recolhida para Luanda", narra Valentim Alexandre. Em resumo, as populações colonizadas percebem que as relações com os colonizadores não são iguais em todos os países, começando a comparar a sua situação com a dos territórios vizinhos, que, como refere no livro, "lhes abriam novos horizontes e lhes suscitavam novas esperanças". Isto terá acontecido, por exemplo, entre Angola e o Congo Belga..A par das pressões internacionais para o governo português seguir um determinado rumo face à autodeterminação das colónias, Salazar teve de se debater com uma tentativa de golpe de Estado, falhada, entre fevereiro e abril de 1961, que ficaria conhecida como a Abrilada. Como se sabe, ainda não foi aí que Salazar caiu. "A Abrilada é uma revolta dirigida pelas cúpulas militares, pelo próprio ministro da Defesa [Botelho Moniz] e pelo ministro do Exército [Almeida Fernandes], para obrigar Salazar a fazer reformas políticas e sociais tanto na metrópole como, sobretudo, em Angola", explica o historiador, sublinhando que não se tratava de afastar Salazar do poder. "Tratava-se de encetar um processo de reformas, porque tinham também a noção de que o país estava muito malvisto externamente, que era muito difícil conseguir aliados nessas circunstâncias e, portanto, que era preciso mudar as coisas para conseguir esses aliados, porventura para continuar a guerra em Angola. Esta contenda interna acaba no dia 13 de abril, quando Salazar assume o Ministério da Defesa e logo a seguir nomeia como ministro do Ultramar Adriano Moreira, o que tem um significado", porque este novo governante era um "reformista dentro do aparelho do Estado. Era subsecretário de Estado da Administração Ultramarina, e, como tal, tinha pressionado para que se fizessem reformas. Assim, Salazar está a empossar alguém como ministro do Ultramar para fazer reformas que eram exigidas por todo o lado", explica o investigador. "Os próprios militares, mesmo os que tinham durante a Abrilada tomado o partido de Salazar, que é o caso, por exemplo, de Spínola, escrevem uma carta a Salazar a dizer que "isto fica assim, o assunto está resolvido de imediato, mas isto só pode ter uma solução política". É preciso procurar uma solução e Salazar está pressionado a encontrar essa solução. E está obrigado a restaurar aquilo que se chama a ordem colonial, sobretudo em Angola, que tinha sido afetada", conta o historiador..Entre as reformas de Adriano Moreira está o fim do "regime de indigenato", que se traduzia numa "separação completa entre a população não indígena e a população indígena. Significava que a população indígena não tinha direitos como a população europeia e que, portanto, vivia num regime particular. Isto já não era aceitável do ponto de vista internacional", garante o autor, lembrando que "foi daí que veio a grande pressão que levou Salazar a ceder"..A título de exemplo, o historiador contou ao DN que havia na Alemanha federal "um político muito à direita", chamado Franz Strauss, "conhecido como o "Touro da Baviera", com um peso importante dentro do regime alemão e que apreciava muito Salazar". Apesar de não achar extraordinário que se mantivesse um regime colonial em Portugal, Strauss enviou "uma carta a Salazar a explicar que não era possível manter o regime em Angola tal como estava. Precisava de reformas e eles estavam dispostos a ajudar Portugal do ponto de vista económico no que fosse preciso, porque se podia criar uma situação extremamente grave de tal conflito e que a certa altura isso viesse a prejudicar toda a Europa", continua o historiador. Em resposta, Salazar foi completamente inflexível, rejeitando que Portugal tivesse colonialismo. Portanto, sem colónias, aos olhos do ditador, Portugal "nada tinha a ver com o que se passava com as colónias dos outros países", rematou o investigador..Questionado sobre se, naquela altura, a ideia de racismo por parte das populações indígenas era usada como argumento pelo regime português para justificar as políticas, Valentim Alexandre explica que o maior "bode expiatório" para as revoltas era o comunismo. "Há toda uma tendência para vir dizer que tudo o que se estava a fazer de insurreição em Angola era uma manobra dos comunistas. Nessa altura não se fala propriamente de racismo. Mais tarde pode ter-se vindo a falar nisso, que havia um racismo africano. E evidente que se podia pegar na questão dos massacres do 15 de março para dizer "aqui está, eles tentaram matar toda a população branca, portanto é uma prova de racismo". Bom, isso tem um contexto por trás. É preciso explicar primeiro os massacres. Não é por uma questão de racismo, é por uma questão de décadas de opressão colonial. Era uma zona que tinha sido, sobretudo nos últimos 15 anos, explorada para produção de café, assumindo uma grande importância para a economia colonial. E para se fazer a cultura do café houve dois processos que eram extremamente opressivos para a população local: a ocupação de terras, que acontecia mesmo que a lei protegesse a propriedade nativa, e depois havia a questão do contrato, que era o trabalho forçado", esclarece o investigador. "Quando era preciso para uma determinada propriedade, por exemplo, na colheita do café, para a qual eram necessários uns milhares de trabalhadores, chegava-se a um sítio, dizia-se ao administrador do conselho "arranje-me 200, 300, 400 homens aqui". O administrador do conselho obrigava-os e apareciam os 200 ou 400 homens, que ficavam com as suas vidas estragadas ou prejudicadas por causa disso tudo", conclui Valentim Alexandre, esclarecendo que nem sempre eram pagos pelo serviço. Claro que isto gerou reações. Este período evocado por Valentim Alexandre neste livro antecede o conflito que ficou conhecido como Guerra Colonial, que só estalaria cerca de um ano mais tarde e duraria 13 anos, até ao 25 de Abril de 1974.. vitor.cordeiro@dn.pt