Quando a violência vai para além da família humana

Há uma interligação entre a violência doméstica e o abuso animal. Dados dos EUA provam isso mesmo. A solução passa por uma abordagem integrada que não só permita uma maior vigilância das várias situações, mas, também, de medidas que permitam que as vítimas (humanas) possam ser ajudadas levando os seus animais de estimação.
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A violência doméstica é um flagelo que não escolhe idades, faixa etária, classe social ou nacionalidade. Todos os anos lemos casos de mulheres (embora também haja casos em que a vítima é de sexo masculino, é inegável que a maioria das vítimas são mulheres) são mortas às mãos dos seus companheiros. Esta é a consequência extrema de um fenómeno que também abarca crianças, idosos e inclusive animais de estimação. Aliás, a Provedora do Animal, Laurentina Pedroso, vai apresentar algumas sugestões de alteração à lei no sentido de relacionar estas duas questões - que estão intimamente interligadas: a violência doméstica e o abuso animal.

Embora não haja números sobre a realidade portuguesa, Laurentina Pedroso acredita que esta não deverá ser muito diferente da norte-americana, sobre a qual, sim, se conhecem dados concretos.

E os números são assustadores. "70% das pessoas que foram acusadas de crimes de maus-tratos a animais, de crueldade contra os animais, já estavam referenciadas por crimes de maus-tratos e violência contra as pessoas, algumas delas até homicídio", revela a Provedora, que acrescenta que foi com estes dados que se começou a relacionar os dois fenómenos.

Na verdade, a interligação entre os dois fenómenos já é reconhecida internacionalmente. "São ciclos de violência que é preciso quebrar", aponta Laurentina Pedroso que aponta que para muitas pessoas os animais (de estimação) fazem parte da família e hoje é reconhecido que a violência contra os animais faz parte desta dinâmica familiar.

E se é importante dar voz às vítimas, há que ter em atenção que os animais não têm essa voz. "Somos nós que falamos por eles", afirma a Provedora. Se os humanos podem testemunhar em tribunal, no caso dos animais também não. "Temos de ser nós a olhar e a perceber se aquele animal está a ser vítima de maus-tratos", aponta. Por outro lado, temos de perceber que ainda há uma desvalorização do animal e uma "quase semi desculpa de quem está a fazer mal a esse animal". Frases como "ah, ele bateu no cão, mas é boa pessoa" não se coadunam com os dias de hoje, frisa Laurentina Pedroso. "Toda a violência deve ser condenada".

Por outro lado, aponta a Provedora, estas situações têm implicações muito graves porque, também segundo estudos feitos nos Estados Unidos, 85% dos diretores dos abrigos que recebiam mulheres ouviram relatos de que essas mulheres viram os seus animais serem maltratados ou eram constantemente ameaçadas ou coagidas a não denunciar o agressor com medo do que este maltratasse ou matasse o seu animal. "80% dessas mulheres relatavam que sentiam que a sua vida corria perigo", afirma Laurentina Pedroso, acrescentando que mais de metade dessas mulheres afirmava que atrasou a denúncia da agressão por ter receio do que poderia acontecer ao seu animal de estimação.

A isso acrescenta-se a preocupação de saber que, se tivessem de sair de casa - fugir, na prática - não poderiam levar o seu animal. "Nos lares onde havia crianças, mais de 75% de violência contra o animal era exercida à frente da mulher e da criança", aponta Laurentina Pedrosa. Sendo que esta é uma situação traumática, que pode resultar em dois fenómenos: as crianças defenderem ainda mais os seus animais; ou passarem elas próprias a serem o agressor. "35% das mulheres que viram os seus animais a serem maltratados disseram que viram as suas crianças começarem a imitar o comportamento do agressor", revela ainda a Provedora do Animal, que considera ser este um outro problema a considerar. "Quando permitimos que estes ciclos de violência se perpetuem estamos a proporcionar que na sociedade comece a haver uma escalada de violência", aponta, refletindo que para a criança a situação de maus tratos passa a ser a norma.

A isto temos de acrescentar a situação em que há violência, numa família, contra uma criança. E porque é que isso é importante? "Porque as crianças, muitas vezes, têm uma ligação emocional intensa com o animal. Muitas vezes é o único ser vivo com quem desabafam. Há dados que indicam que quando a assistência social intervém junto de famílias com queixas de abuso físico e negligência de crianças, 90% das vezes avaliaram que o animal também era maltratado e negligenciado", revela a Provedora.

Questionado sobre o que diz a legislação atual, o Procurador da República para o Gabinete da Família, da Criança, do Jovem e do Idoso e contra a Violência Doméstica, Miguel Ângelo Carmo, lembra que, no que concerne ao abuso animal, estamos num "impasse do ponto de vista legislativo, quanto a saber-se se a criminalização que está vigente, está, ou não, em crise, face às decisões do Tribunal Constitucional". Sendo que isso, explica o procurador, vai implicar necessariamente que, ou haja uma alteração à Constituição, para que possa haver uma criminalização própria dos maus tratos contra animais, sem problemas de constitucionalidade, ou teremos de continuar a proteger a violência contra os animais na perspetiva de que o animal é entendido como uma coisa e que poderá ser protegido por via do Direito de Propriedade por parte dos seus donos.

Uma outra abordagem, decorrente da parceria feita entre a Procuradoria-Geral e a Procuradora Animal, consiste numa ligação grande entre a violência contra as pessoas e a violência contra os animais. E, nesta perspetiva, a violência doméstica enquanto crime específico - um crime autónomo - pode englobar também a violência contra animais. O grande desafio é o de sensibilizar (ainda mais) todos os operadores. Não são apenas as autoridades, mas também os médicos, a sociedade civil no sentido dessa mudança.
A verdade é que não existindo meios de apoio (concretos e estruturados) que liguem os dois fenómenos, isso leva a que ocorram situações em que a vítima permanece numa situação de violência por medo de represálias contra o seu animal de estimação. Ou por não poder fugir com ele.

Embora isto seja uma realidade, Miguel Ângelo Carmo alerta que esta não é uma responsabilidade direta por parte das autoridades policiais nem das autoridades judiciais. "Essa é uma tarefa para a rede de proteção às vítimas de violência doméstica, que está a cargo do Governo, através da Comissão de Igualdade de Género: habilitar as estruturas de acolhimento para que permitam acolher as vítimas e os seus animais", aponta, acrescentando que os animais são um fator determinante para que as vítimas recuem na sua vontade de denunciar. "Conheço casos em que isso aconteceu".

É certo que a criação de uma estrutura de apoio que permitisse o acolhimento das vítimas e dos seus animais de estimação - e que faz parte das sugestões da Provedora Animal - ajudaria e muito. No entanto, a sua eficácia seria ainda maior se essa mesma estrutura fosse apoiada por uma alteração na legislação. "A ligação existe", aponta Miguel Ângelo Carmo, que acrescenta que tem é de haver uma sensibilidade prévia a ela. Isto porque quando a violência é exercida sobre o animal, um dos seus objetivos é o de (também) causar maus-tratos psicológicos à vítima pessoa. "Se encararmos isto nesta perspetiva, o animal - que do ponto de vista legal não é considerado vítima direta da violência doméstica - é vítima dado que faz parte da equação relativamente à vítima pessoa".

Qual o problema atual? A recolha e tratamento de dados a nível geral relativamente à violência doméstica. A última alteração à legislação contempla a criação de uma base de dados que será muito útil quer às autoridades quer ao Ministério Público. Sobre esta, Miguel Ângelo Carmo refere que, numa perspetiva otimista, seria bom que estivesse a funcionar durante o ano de 2024. A par da sensibilização de toda a comunidade na perspetiva preventiva. "Porque quando o assunto chega às autoridades já é tarde ou os danos já aconteceram de forma muito mais grave e irreversível", constata. "Agora, se a comunidade, nomeadamente as que lidam diretamente com os animais de estimação, conseguirem estar atentas aos sinais, obviamente que a sinalização será maior e a eficácia preventiva - e repressiva - também será maior".

A solução proposta passa por interligar as vertentes de saúde e cuidado animal com a assistência social a pessoas em risco e vítimas de violência doméstica. "Sempre que uma assistente social vai visitar uma família referenciada, da mesma forma que procura saber se há crianças envolvidas, deve tomar nota também se existem animais de estimação e procurar saber se estes também são maltratados". Outra situação: ao detetar-se abuso animal - através de visitas ao veterinário, por exemplo - sinalizar o caso, estando este integrado com a assistência social. Porque a verdade é que a probabilidade de haver violência em simultâneo contra seres humanos e animais é grande.

Na prática trata-se de alargar o âmbito da violência familiar. Porque "não são só as mulheres ou as crianças que são agredidas, são também os seus animais", aponta Laurentina Pedroso, que acrescenta que se o Tribunal determinar a retirada de uma criança a alguém, por maus tratos, a mesma medida deve ser aplicada ao animal doméstico, se houver. "O animal não pode ser deixado para trás. É outro elemento vulnerável da família", afirma, convicta.
Na prática o que se pretende é que o conceito de violência doméstica - e as várias medidas daí decorrentes (incluindo as medidas cautelares) - incluam os animais de estimação.

A Provedora dá o exemplo dos EUA em que o juiz avalia o elo entre a criança e o animal. "Em 90% dos casos em que as crianças eram maltratadas os seus animais também o eram". Voltando aos EUA, "as famílias de acolhimento não só recebem as crianças como os seus animais", acrescenta Laurentina Pedroso.

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