Quando a paixão pelas moedas leva a descobrir um tesouro

Rui Centeno, presidente da Sociedade Portuguesa de Numismática, seguiu, durante 30 anos, o rasto a moedas romanas furtadas
Publicado a
Atualizado a

Ao longo da vida como investigador do património e apaixonado pela numismática e arqueologia, Rui Centeno identificou e estudou milhares de moedas, peças com séculos de existência e vestígios arqueológicos. Mas o presidente da Sociedade Portuguesa de Numismática nunca tinha passado por uma experiência como a que ditou a recuperação de dez moedas do período romano - uma delas única - que tinham sido furtadas em 1985 de uma ermida em Sanfins do Douro, concelho de Alijó. "Este foi um episódio singular, com um final parcialmente feliz", disse ao DN o investigador que colocou a PJ na pista de um tesouro com mais de vinte séculos.

E foi parcial porque das 57 moedas desaparecidas apenas foram recuperadas dez, que nesta semana foram entregues pela Diretoria do Norte da PJ ao Museu Arqueológico D. Diogo de Sousa, em Braga. A história assume de facto características invulgares pelo interesse demonstrado pelo também investigador do CITCEM - Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória, da Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

"Em setembro de 1983 andava a recolher materiais e documentos para a minha tese de doutoramento que só publiquei em 1987. Não tinha que ver com furtos a tese, como foi noticiado. Era sobre a Circulação Monetária no Noroeste de Hispânia até 192", explicou. Foi uma aventura que levou Rui Centeno a "registar mais de 40 mil moedas, em igrejas, museus, aldeias e outros locais". A tarefa "era difícil naquela altura" tendo em conta os meios tecnológicos. "Fotografei tudo com uma máquina minha, hoje seria diferente."

O conjunto original seria constituído por 63 moedas, de acordo com o relato escrito pelo padre Manuel Alves Plácido, quando foram encontradas em 1958 durante a realização de obras no Santuário de Nossa Senhora da Piedade. Estavam dentro de um vaso que surgiu durante escavações. Foram guardadas e colocadas numa vitrina na ermida no monte em Sanfins do Douro. "Quando lá estive em 1983 já só restavam 57 moedas. Registei e fotografei todas", recorda. Este registo foi decisivo mais tarde.

Rui Centeno ficou impressionado com a riqueza do património ali encontrado. "Por duas razões. Primeiro havia uma moeda única, um denário cunhado durante a Guerra Civil de 68-69, com a legenda LIBERTAS-PVBLICA no reverso. Depois, estava exposto no local onde tinham sido encontradas."

Ainda envolto no trabalho da tese de doutoramento e quando lia o diário O Comércio do Porto, em 1985, o professor universitário foi surpreendido pela notícia do furto das moedas do santuário, denunciado pela comissão fabriqueira à GNR. "Nunca mais pensei muito naquilo e acabei a tese em 1987. Anos mais tarde, tomei conhecimento através das atas de um congresso de numismática que três espanhóis tinham publicado um artigo sobre a moeda rara. Davam como se tivesse sido descoberta em 2007." Apesar de ter entrado em contacto com Campana Prieto, um dos colegas espanhóis, para alertar que se tratava de moedas roubadas, não teve um feedback muito colaborante. "Não fizerem bem o trabalho nem revelavam a proveniência das moedas. Pensei que morria ali a busca." Isto em 2009.

Mais um período de hiato na história e em 2016 nova revelação acaba por levar Rui Centeno à PJ. "Um dia abro o computador, vou às leiloeiras de moedas e deparo com aquela moeda única. Nem queria acreditar. Estava em licitação por sete mil euros. Peguei em toda a documentação que tinha, digitalizei-a e fui à PJ."

Os investigadores da polícia aceitaram de imediato tratar do caso. "Alertei que só havia três semanas até ao leilão e foram muito eficazes. Passados alguns dias ligou-me o inspetor José Guimarães, com quem tinha falado, a dizer que a polícia espanhola já tinha apreendido a moeda." O proprietário foi identificado e além do famoso denário foram recuperadas mais nove moedas romanas. Há 47 de que ainda não se conhece o rasto.

Rui Centeno aponta que o furto em Sanfins do Douro terá sido cometido por alguém da região, conhecedor da existência do tesouro na ermida, muito provavelmente um emigrante. "Posso estar a ser injusto mas tudo aponta nesse sentido. O furto terá sido executado em 7 ou 8 de setembro de 1983, período habitual do regresso de emigrantes [ao país onde trabalham]. Ficámos a saber que foram vendidas em Vitória, no País Basco, no itinerário dos emigrantes."

Há outro dado interessante. Do que se sabe o vendedor alegou que era trabalhador agrícola e que as moedas foram encontradas por acaso. Terá vendido 47 moedas a outros dois compradores e em Vitória fez dinheiro com aquelas que considerava ser as piores. "Por sorte, no lote estava o denário único." Mesmo assim, a história estava longe de findar e demorou quase dois anos até ao retorno a Portugal, muito por culpa da burocracia.

Património sem segurança

Estas moedas romanas de Sanfins do Douro ilustram bem como uma parte importante do património português está à mercê de roubos. "As condições de segurança não eram as melhores. Era uma vitrina de fácil acesso", reconhece Rui Centeno, para quem há mais peças valiosas que não estão devidamente protegidas, seja em termos de conservação ou de segurança.

"Muito do nosso património, que tem um valor identitário e sentimental muito elevado, não está convenientemente protegido. Não vou agora dar exemplos, mas há património que deve estar em instituições, para ser bem conservado e protegido", diz o investigador que ao longo das últimas quatro décadas percorreu grande parte do Norte do Península Ibérica em busca de património.

As mudanças na valorização dos objetos foram grandes com "o que antes tinha apenas um significado meramente religioso a ter hoje um valor de mercado muito elevado". O desaparecimento de arte sacra das igrejas e capelas é hoje muito vulgar, sendo mesmo alvo de cobiça de grupos organizados. "Até indivíduos estrangeiros vêm cá para roubar e muitas vezes procuram objetos já previamente identificados por compradores", realça Rui Centeno, que admite por vezes "ser muito difícil ao Estado atuar nas situações de património mal protegido." Há muita coisa que "não está devidamente valorizada" e também é propriedade de particulares, o que levanta logo problemas".

Mas, alerta, "ninguém duvide de que há muito material por aí para ser assaltado e este caso das moedas romanas é um bom exemplo, com um desfecho parcialmente feliz mas nem sempre isso acontece." Diverge também da ideia de que as populações locais gostam muito do património e o preservam. "Não é verdade, infelizmente. Alguns dos maiores atentados ao património são feitos por pessoas locais, em diversas vertentes", critica.

Este tesouro romano também passou por estas peripécias devido à época em foi achado. "Em 1958 era diferente. Se fosse hoje, nunca ficariam na ermida já que a lei mudou. Tudo o que for encontrado no subsolo é propriedade do Estado."

Na sua paixão pela numismática e pela arqueologia, com trabalho de investigação desenvolvido em diversas citânias portuguesas, como as de Conímbriga, Sanfins (Paços de Ferreira) ou Romariz (Santa Maria da Feira), Rui Centeno diz que o trabalho de preservação é essencial. "Estas moedas explicam muito, dão informações cronológicas, informam sobre a sua circulação numa determinada região. Se estiver tudo bem conservado, daqui a cem anos, com outros meios até, alguém irá estudar de novo e chegar a conclusões que eu fui incapaz de verificar."

Determinante para a PJ agir

"Conseguimos dar uma resposta adequada e eficaz e para isso o professor Rui Centeno foi determinante. Deu-nos toda a informação sobre a moeda e onde se encontrava", reconheceu ao DN Pedro Silva, coordenador da brigada que investiga os furtos e falsificação de obras de arte na Diretoria do Norte da Polícia Judiciária (PJ).
Perante o "conhecimento da matéria, devido a ter estudado o lote furtado", as informações de Rui Centeno foram decisivas para o trabalho da polícia de investigação criminal. "É um especialista, ou não fosse presidente da Sociedade Portuguesa de Numismática, e tinha detetado a colocação da moeda no mercado", explica Pedro Silva. Os procedimentos da PJ foram imediatos em 2016. Foi contactada a congénere espanhola e a cooperação foi eficaz. "Os protocolos de contacto com Espanha funcionaram e foi possível chegar ao consignante do negócio rapidamente. Ainda tinha mais moedas e conseguiu-se recuperar estas dez."
Esta fase foi rápida, mas o regresso deste património a Portugal foi mais demorado. "Burocracia pura e dura, nos meios judiciais e diplomáticos", admite o coordenador da PJ. Depois dos trâmites legais, as autoridades espanholas acharam por bem realizar uma cerimónia de entrega das moedas na Embaixada de Portugal em Madrid. Foi necessário conciliar datas. "E entretanto passou um ano", diz Pedro Silva. Elementos da PJ foram à capital espanhola para trazer o lote. Apesar das certezas foram realizadas perícias. "Indicámos ao Ministério Público o próprio Rui Centeno e foi aceite." Depois foi preciso esperar que a Direção-Geral do Património Cultural designasse o local onde iriam ficar.
A comunicação de Rui Centeno levou à abertura do inquérito. "O caso estava arquivado e até prescrito. Se hoje chegássemos aos autores do furto, já não haveria procedimento criminal", diz o elemento da PJ, que da sua experiência não se recorda da recuperação de património tão antigo. "Temos sempre casos de pessoas que alertam ou denunciam sobre negócios ilegais com obras de arte. Mas como este caso é muito raro."

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt