Quando a América primeiro acabou na Grande Depressão

Foi uma América acabada de sair da I Guerra Mundial a que entrou nos Loucos Anos 20. Década de aventura e extravagância, época de ouro do <em>jazz</em> e da rádio, nestes anos os EUA viram a economia disparar, com a produção de massa. Cresceu tanto que achou que se bastava a si própria. Numa década de presidentes republicanos, limitou a imigração e proibiu o álcool e o jogo. Em resposta, o crime organizado cresceu. E os anos 20 não chegariam ao fim sem a América viver a pior crise financeira de sempre.
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Ainda os loucos anos 20 não tinham terminado quando a revista Time começou a escolher o seu Homem do Ano (sim, só em 1999 é que passou a ser Pessoa do Ano). E as escolhas não podiam definir melhor a década: Charles Lindberg, o aviador que fez a primeira travessia a solo do Atlântico, em 1927 (quatro anos após a criação da revista), Walter Chrysler, o empresário do automóvel cujo edifício ainda hoje é exemplo de art déco em Nova Iorque, em 1928, e Owen D. Young, em 1929. Quem? devem estar a pensar. Ora, além de diplomata e de ter fundado a Radio Corporation of America, Young foi também conselheiro de cinco presidentes e o representante dos EUA na Comissão Internacional de Reparações da Alemanha.

Foi de facto um mundo acabado de sair da Primeira Guerra Mundial, o que entrou nos anos 1920 do século XX. O conflito terminara há menos de dois anos e mudara tudo. A economia tentava recuperar do esforço de guerra com os Estados Unidos a ter o maior PIB per capita do mundo - depois de no século XIX já ser a maior economia mundial. As mulheres, cuja força de trabalho foi essencial quando os homens partiram para a frente, não só conquistaram de vez o lugar no mercado de trabalho como ganharam direitos laborais. Mais influentes, essenciais para a economia, em muitos países ocidentais adquiriram nesta década o direito de voto - as presidenciais de 1920 foram as primeiras em que as americanas puderam ir às urnas. Os espartilhos e vestidos compridos deram lugar às roupas mais largas e confortáveis. Os cabelos ficaram mais curtos. Nascia a flapper, a mulher dos anos 20 que não só usa saias mais curtas como ouve jazz, dança charleston e tem desdém pela tradicional conduta feminina.

Estes são, de facto, tempos de prosperidade económica na América. A novidade traz a modernidade e a tecnologia, agora acessível à classe média e já não apenas às elites, faz que tudo pareça fazível. É a era da produção em massa. A época de ouro da indústria automóvel. O modelo T da Ford tornou-se no símbolo da massificação do carro como meio de transporte na América, sinónimo de liberdade e aventura. Ora com a multiplicação dos carros surgiram outras necessidades: estradas, pontes e autoestradas tiveram de ser construídas e melhoradas. Mas não foi só aqui que a construção viveu um boom. Também a construção civil disparou, a rede elétrica alargou-se. As grandes cidades como Nova Iorque ou Chicago viram surgir os primeiros arranha-céus - por vezes também eles ligados à indústria automóvel, como o edifício Chrysler, mandado construir por Walter Chrysler, o tal Homem do Ano 1928 para a Time, para ser a sede da empresa.

Toda a sociedade americana estava em ebulição. Foi a era do jazz, com nomes míticos como Louis Armstrong, Duke Ellington ou Bing Crosby a ganharem um lugar na história. F. Scott Fitzgerald escreve O Grande Gatsby, para falar apenas de um dos nomes da Geração Perdida que, desiludidos após a guerra, trocaram a América por Paris. Mas podia ter escolhido Ernest Hemingway ou Gertrude Stein. Surgem novas danças, do foxtrot ao charleston.

Se em termos económicos são os EUA a alavancar a Europa, os anos 1920 são também a época da proibição. Jogo, álcool e drogas são banidos pela Constituição numa reação ao alcoolismo, à violência e à chamada política de saloon vinda da América do século XIX. Na segunda década do século XX, confinado às salas escuras dos speakeasies - os bares ilegais -, o consumo de álcool pode até diminuir, mas também se democratiza com as mulheres a entrar cada vez mais neste jogo social.

Como todas as medidas radicais, também a proibição teve o seu reverso da medalha, com organizações criminosas a assumir o controlo do negócio do álcool em muitas cidades. A maior figura do crime organizado desta época foi Al Capone.

O chefe da máfia de Chicago dominava uma vasta rede de bordéis, clubes noturnos, restaurantes, speakeasies, casas de jogo e destilarias. "Sou como outro empresário qualquer, o que faço é responder à procura", garantia o inimigo público número um. Extravagante por natureza, Capone era também conhecido pela generosidade e apoio à caridade, valendo-lhe a alcunha de Robin dos Bosques dos tempos modernos. Mas Capone era também um assassino sem piedade se alguém desafiasse a sua autoridade, tendo acabado por ser detido pelo FBI por fraude fiscal.

Época de todos os exageros, os anos 20 viram o cinema passar de mudo a sonoro, a rádio tornar-se no primeiro meio de comunicação verdadeiramente de massa e alguns homens realizarem feitos que ficaram para a história, como Charles Lindberg, o aviador que foi a primeiro Homem do Ano da Time. Aos comandos do seu The Spirit of St. Louis, voou em solitário de Nova Iorque até Paris, atravessando o Atlântico em 33 horas e 31 minutos, a 20 de maio de 1927. Um feito só possível graças aos avanços na aviação que a década de 1920 trouxe e ao espírito de aventura que a caracterizou. "É a maior descarga de adrenalina estar a fazer o que sempre quisemos fazer. Sentimos quase como se pudéssemos voar sem o avião", afirmava Lindberg.

O original "America first"

Ao mesmo tempo que a América se tornava cada vez mais poderosa, crescia a ideia de que não precisava de mais ninguém. Era o "América primeiro" que em 1920 levou o republicano Warren Harding à presidência. O slogan soa familiar? Não é por acaso, afinal Donald Trump recuperou este "America first", devolvendo também os EUA a esse isolacionismo que marcou os anos 1920. Aquela seria uma década de presidentes republicanos. A Harding sucede Calvin Coolidge em 1923, por morte do primeiro. Reeleito em 1924, Coolidge governa até 1929, quando toma posse Herbert Hoover. Este será derrotado em 1932 pelo democrata Franklin Roosevelt, o homem que haveria de conduzir a América à Segunda Guerra Mundial.

De fora da Liga das Nações por decisão do Senado, que em 1919 contrariou os desejos do presidente democrata Woodrow Wilson, a América virou-se para dentro, apostando no "controlo absoluto dos EUA pelos EUA", como rezava a campanha de Harding.

Uma das principais consequências deste isolacionismo foram as restrições à imigração. A lei da imigração de 1924, além de proibir a entrada de asiáticos, indianos e outros não europeus não elegíveis para naturalização, veio limitar a entrada de novos imigrantes nos EUA a 2% do número total de pessoas com aquela origem nacional que já residisse no país em 1890. O objetivo era claro: travar o crescimento da imigração de europeus do sul. Italianos, gregos e portugueses foram muito afetados. Mas judeus, polacos e outros eslavos também sofreram as consequências desta nova lei. No caso dos portugueses, a quota anual de entrada nos EUA ficava reduzida a 503, uma vez que a comunidade em 1890 era muito pequena, tendo aumentado a bom ritmo depois disso. Mesmo no caso dos italianos, uma comunidade muito maior que incluía desde a família de Al Capone à de Frank Borzage, vencedor do primeiro Óscar para melhor realizador com Seventh Heaven (A Hora Suprema), a quota ficava abaixo dos cinco mil por ano. Ao todo, estavam autorizados a entrar 165 mil imigrantes por ano oriundos do Ocidente, uma redução de 80% em relação à média anterior à guerra.

Terminada a Primeira Guerra Mundial, muitos americanos temiam que trazer mais imigrantes para os EUA fosse agravar o desemprego. Além disso, o receio da expansão comunista exacerbou sentimentos xenófobos, reforçando o receio de que alguns elementos radicais imigrassem para a América para minar os valores democráticos e incentivar a uma revolução bolchevique como na Rússia em 1917.

Final infeliz

A década da aventura, das danças frenéticas, do jazz e do tudo é possível não chegaria, contudo, ao fim sem que a América enfrentasse a pior crise financeira da sua história. Na quinta-feira dia 24 de outubro de 1929, a Bolsa de Valores de Nova Iorque caiu 11% e a notícia fazia a primeira páginas de todos os jornais, do mais sóbrio The New York Times, que dava conta de que "A Bolsa colapsou", ao Des Moines Register, que fazia manchete a dizer "Bolsa encolhe 10 mil milhões", ou o Philadelphia Inquirer, que destacava "Pânico em Wall Street". Foi de facto o pânico que se seguiu e o mundo entrava na Grande Depressão que marcaria a década seguinte, alastrando da América à Europa. Entre 1929 e 1932, o PIB mundial caiu 15 pontos percentuais. Em comparação durante a crise de 2008-2009 caiu um ponto percentual.

A verdade é que o primeiro sinal de que algo estava mal surgira logo no início da década. Em 1920-21 a América sofreu uma depressão. A causa? O regresso ao mercado de trabalho de mais de um milhão de soldados que combateram na Primeira Guerra Mundial. Perante o excesso de mão-de-obra, os sindicatos tiveram mais dificuldade em negociar salários.

Passada esta depressão, o preço das ações estava baixo, os preços tinham caído e os salários também. A abundância de recursos baratos permitiu uma recuperação em força da economia americana.

Com o boom da classe média e o fácil acesso ao crédito, muitos decidiram investir na Bolsa e as ações iam valorizando. A especulação foi subindo, com os investidores convencidos de que o mercado bolsista ia continuar em alta para sempre. Em março de 1929 os avisos da Reserva Federal para uma especulação excessiva não tiveram qualquer repercussão.

Foi preciso a Quinta-Feira Negra para fazer soar os alarmes. Mas já era tarde. Foram necessários mais de três anos para o Dow Jones começar a recuperar. Falências, desemprego em massa, longas filas de pessoas à espera da sopa dos pobres - estas imagens repetiram-se durante anos numa América que verdadeiramente só sairia da Grande Depressão com o New Deal de Roosevelt e sobretudo com a sua entrada na Segunda Guerra Mundial.

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