Corrupção, exploração laboral, jogos no inverno. O que mais falta acontecer ao Mundial do Qatar?
O emirado árabe do Qatar é uma pequena península que irrompe pelo Golfo Pérsico, mas cujo território é um pouco maior que a região portuguesa do Baixo Alentejo. Contudo, dinheiro é coisa que não falta graças às receitas do petróleo e do gás natural, do qual tem a terceira maior reserva mundial.
A influência do dinheiro catari tem crescido em vários setores de atividade no mundo, sobretudo no futebol onde têm uma posição dominante no Paris Saint-Germain, são patrocinadores do Barcelona e conquistaram uma grande influência nos centros de decisão, sobretudo na FIFA. O ponto alto de afirmação do Qatar na indústria futebolística foi quando a 2 de dezembro de 2010 foi escolhido como organizador do Mundial 2022, contra todas as expetativas... ou nem por isso.
A decisão não foi unânime, gerou muita controvérsia por causa das dúvidas que se levantaram em relação a alegadas irregularidades que levaram à escolha da FIFA e, ao mesmo tempo, criou uma série de preocupações no âmbito desportivo, nomeadamente no que diz respeito às altas temperaturas que se registam no verão naquela zona do globo, que obrigaram a que o torneio seja realizado no inverno - de 21 de novembro a 18 de dezembro - pela primeira vez na história dos Campeonatos do Mundo de futebol.
Fazer um Mundial no Médio Oriente foi uma das bandeiras de Joseph Blatter, o antigo presidente da FIFA, mas nos anos que se seguiram à escolha do Qatar, o ex-dirigente suíço admitiu ter sido um erro. "Sim, foi um erro, mas, na vida, cometem-se muitos erros", disse o ex-dirigente, uma ideia partilhada também por outros responsáveis do organismo que superintende o futebol. Um erro causado pelo poder do dinheiro, afinal a organização catari dispõe de fundos ilimitados para a construção de oito estádios topo de gama em cinco cidades, além de todas as infraestruturas necessárias.
Mas o dinheiro não apaga as polémicas que se sucederam, sobretudo no que tem a ver com a violação dos direitos humanos, com a exploração do trabalho dos migrantes, em situação de precariedade laboral, para a construção dos estádios. Isto além da tradição religiosa que limita o papel das mulheres na sociedade.
Enfim, e só escolher a polémica que mais convém. E a mais impactante tem sido as suspeitas de corrupção no processo de atribuição da organização do Mundial ao Qatar, nomeadamente na compra de votos, que atingiram altos responsáveis da FIFA e, mais recentemente deixaram sob suspeita Michel Platini, antigo presidente da UEFA, que teve de prestar declarações sobre uma alegada influência de Nicolas Sarkozy, antigo presidente francês, para que o antigo futebolista intercedesse junto das outras federações europeias para que votassem a favor da candidatura catari.
Curioso é que no Médio Oriente garantem que o Emir do Qatar tem tolerância zero para casos de corrupção, razão pela qual em muitos setores árabes defendem que não é possível ter comprado o Mundial 2022. Mas a verdade é que nunca um Mundial foi escrutinado como este.
Foram denúncias feitas por altos funcionários da FIFA que lançaram as suspeitas sobre a legalidade da atribuição do Campeonato do Mundo ao Qatar, devido a alegados subornos que visavam a compra de votos. O esquema era conduzido pelo catari Mohammed bin Hammam, na altura presidente da Confederação Asiática de Futebol na época, tendo o jornal inglês Sunday Times revelado em 2014 o teor de documentos, emails, cartas e comprovativos de transferências bancárias, que alegadamente provavam o esquema de corrupção, nomeadamente que Bin Hammam tinha pago mais de cinco milhões de dólares (cerca de 4,4 milhões de euros) a várias pessoas para que apoiassem e votassem na candidatura do Qatar.
A acusação ganhou força quando Phaedra Almajid, uma antiga funcionária da candidatura do Qatar 2022, revelou publicamente que vários dirigentes do futebol africano receberam 1,5 milhões de euros do Qatar, uma forma de comprar os votos suficientes para garantir a organização do Campeonato do Mundo.
Em março de 2014, foi também revelado que uma empresa ligada à candidatura catari tinha pago dois milhões de dólares (1,8 milhões de euros) ao tobaguenho Jack Warner, que era então vice-presidente da FIFA e líder da CONCACAF, uma denúncia que mereceu a investigação do FBI. Um pouco por todo o mundo, várias pessoas ligadas às diversas confederações de futebol foram detidas.
Dois anos depois de ter eclodido o escândalo e de terem sido feitas as primeiras detenções, a própria FIFA entregou à justiça suíça um documento com 1300 páginas sobre os 22 meses de investigação interna sobre este caso que abalou os alicerces da organização e do próprio futebol mundial.
Além das autoridades suíças e norte-americanas, também as francesas investigam as alegadas irregularidades na atribuição do Mundial 2022 ao Qatar. E na semana passada Michel Platini, antigo presidente da UEFA, foi mesmo detido para interrogatório, tendo sido ouvido durante 15 horas, após as quais viu ser levantada a medida de prisão preventiva. Em causa estaria o teor de uma reunião no Palácio do Eliseu que o antigo futebolista teve com Nicolas Sarkozy, antigo presidente da república francesa, sobre quem recaem suspeitas de ter recebido subornos para apoiar a candidatura catari.
Mas as ameaças ao Mundial 2022 chegaram também pela via diplomática, sobretudo quando, em junho de 2017, Arábia Saudita, Bahrein, Emirados Árabes Unidos, Iémen e Egito cortaram relações com o vizinho Qatar, colocando em causa toda a operação logística que estava a ser preparada para o Campeonato do Mundo.
O corte de relações diplomáticas, que implicou um bloqueio económico, era justificado por aqueles estados do Golfo Pérsico com a necessidade de protegerem a respetiva segurança nacional do terrorismo e do extremismo, tendo em conta que estes países acusam o Qatar de apoiar a Al-Qaeda e o Estado Islâmico.
Contudo, a verdade é que, apesar do isolamento em relação aos vizinhos, o Qatar acabou por não ser muito afetado pelo bloqueio, uma vez que se virou para outros parceiros, como a Turquia e o Irão. A questão é saber que efeitos terá este problema diplomático na realização do Campeonato do Mundo, no caso de o bloqueio não ser levantado antes de 2022. É bom não esquecer que o Qatar tem um pequeno território e o suporte dos vizinhos, em termos logísticos, seria importante.
O Campeonato do Mundo tem sido sempre disputado nos meses de junho e julho, altura em que terminam as épocas desportivas na Europa e que coincide com o verão do hemisfério norte. Nesse sentido, o clima no Qatar nesta altura do ano foi sempre uma preocupação, sobretudo porque as temperaturas chegam a superar os 50 graus centígrados, condições que são incompatíveis com a realização de um jogo de futebol.
No processo de escolha da organização do Mundial 2022, alguns médicos manifestaram preocupação no que diz respeito às condições climatéricas do Qatar. Asseguravam que as altas temperaturas iriam afetar o desempenho dos futebolistas e poderia inclusive afetar a saúde dos atletas. O "alto risco" com que foi designado o clima foi mais um dado que contribuiu para que se adensassem as suspeitas em torno do processo de eleição da candidatura catari.
Inicialmente, Joseph Blatter, na altura presidente da FIFA, rejeitou as críticas. E até Hassan al-Thawadi, chefe executivo da candidatura, deu garantias que o calor não seria problema, pois o Qatar tinha um sistema capaz de reduzir as temperaturas de 50 para 27 graus dentro dos recintos. "Cada um dos estádios vai aproveitar o poder dos raios do sol para fornecer um ambiente fresco para jogadores e fãs através da conversão de energia solar em eletricidade. Durante o tempo em que não houver jogos, os painéis solares dos estádios vão exportar energia para a rede elétrica, que é depois retirada durante os jogos", disse então este alto responsável, numa ideia que acabou por não ser acolhida, afinal não seria possível baixar as temperaturas... nas ruas.
Foi já depois de se ter colocado a hipótese de os jogos se realizarem à noite, quando a temperatura fosse menos agressiva, que Blatter admitiu, em setembro de 2013, avaliar a possibilidade de o evento se realizar no inverno, altura em que as temperaturas são mais baixas naquela zona do globo. E assim foi. O Mundial 2022 vai disputar-se de 21 de novembro a 18 de dezembro, o que vai obrigar a uma reestruturação dos calendários das competições de clubes na Europa.
Esta data não foi pacífica e a Premier League contestou-a e sugeriu até mudar o país organizador, uma vez que iria ser afetada toda a calendarização dos clubes. A essa voz juntaram-se a associação Ligas Europeias Profissionais de Futebol (EPFL) e a Associação Europeia de Clubes (ECA), que lembraram que os campeonatos e os clubes europeus que fornecem mais de 70% dos jogadores para o Campeonato do Mundo, que decorre durante um mês e é antecedido por um período entre os 20 e os 30 dias durante o qual cada seleção nacional realiza os seus estágios e jogos de preparação para o Mundial.
Assim sendo, serão seis ou sete semanas de calendário ocupado, colocando alguns problemas no que diz respeito às receitas dos clubes nesta fase do ano. Curioso é que a sugestão de realizar o Mundial no inverno até foi impulsionada por Michel Platini, ainda como presidente da UEFA...
Em 2017, Ali Shareef Al-Emadi, ministro das finanças do Qatar, tinha afirmado a uma delegação de jornalistas convidados a visitar as obras para o Mundial 2022, que os custos totais da organização deste evento que chegariam a 187 mil milhões de euros e que até 2021 teria a expetativa de gastar mais de 440 milhões de euros por semana na construção de infraestruturas.
Segundo algumas estimativas recentes, os custos totais já ascendem aos 195 mil milhões de euros devido às derrapagens com algumas obras dos oito estádios, sendo um deles, o Ras Abu Aboud (Estádio do Porto de Doha), um recinto construído com contentores marítimos e que é desmontável... ou seja, deixará de existir depois do Mundial. Verbas astronómicas que podem representar 60 vezes mais do que foi gasto na África do Sul, em 2010.
Para se ter uma ideia, o estádio que irá receber os jogos de abertura e da final do Mundial 2022, o Lusail, custará perto de 700 milhões euros e, após a competição, também será desmontado e transformado num espaço comunitário integrado numa cidade nova, construída de raiz, orçada em cerca de 40 mil milhões de euros. Na prática, as autoridades cataris não olham ao dinheiro para dotarem o torneio de todas as condições para ser um sucesso.
Mas o mais curioso é que a FIFA, liderada por Gianni Infantino, chegou a admitir que este fosse o primeiro Mundial a ser disputado por 48 seleções, ao contrário das atuais 32, mas acabou por abandonar esta ideia, uma vez que seria necessário a ajuda de Oman e Kuwait para que acolhessem alguns jogos da prova. Uma ideia que acabou por não ir avante, pois além das questões geopolíticas da região, iria aumentar ainda mais o custo total do torneio.
A construção de todas as infraestruturas associadas ao Mundial está também envolta em polémica relacionada com as condições de trabalho de cerca 1,9 milhões de migrantes, provenientes da Índia, Nepal, Paquistão, Filipinas e Bangladesh. A Confederação Sindical Internacional denunciou que esses trabalhadores estavam em condições muito precárias e eram vítimas do abuso dos empregadores, que os impedem de sair do país sem autorização, estando ainda impedidos de mudar de emprego.
Mas os problemas não ficam por aqui, pois em novembro de 2013, a Amnistia Internacional classificou de "exploração grave", a forma como eram tratados os trabalhadores, que eram inclusive obrigados a assinar declarações falsas de que tinham recebido os seus salários (quando a realidade não era assim) para que pudessem recuperar os seus passaportes, entretanto confiscados pela entidade empregadora.
O embaixador do Nepal no Qatar chegou a falar em "prisão aberta" para os migrantes nepaleses que trabalhavam nas obras de forma ilegal, além de viverem em campos de trabalho com condições precárias e prejudiciais à saúde. Uma reportagem do jornal The Guardian, chegou mesmo a denunciar que havia registo de mortes súbitas, causadas por ataques cardíacos, quase diárias entre os trabalhadores nepaleses, que relataram espancamentos por simplesmente terem pedido comida, havendo ainda casos em que lhes era negada água.
A polémica foi tão grande que o governo do Qatar teve de mudar as suas leis laborais por forma a permitir melhores condições de trabalho. A mudança na legislação foi considerada, por ativistas e defensores de direitos humanos, como um importante marco histórico e um passo na luta pelos direitos dos trabalhadores, embora haja o receio que após o Mundial tudo volte a ser como dantes.
O Qatar vai tornar-se o país mais pequeno a receber um Mundial de futebol, algo que levanta algumas questões relacionadas com a presença de tantos adeptos no país durante um mês. Um dos problemas que se levantava era a proibição vigente no país de se consumirem bebidas alcoólicas, algo que as autoridades já contornaram, pois durante o mês que decorrerá o torneio essa proibição será levantada, embora não permitam a sua ingestão em público.
Na prática, nem que seja por um mês, o Qatar vai tornar-se num país do futebol e tudo indica que esteja a tentar criar todas as condições para receber os milhares de adeptos dos vários pontos do mundo que vão entrar nas suas fronteiras para assistir aos jogos. A organização estima que vão estar cerca de 500 mil turistas em toda a península no período em que vai realizar-se a competição. E há até projetos de hotéis flutuantes na costa de Doha, em pleno Golfo Pérsico.
No plano desportivo, há muito que o governo catari começou a criar condições para que o futebol se desenvolva. Há cerca de dez anos, foram criados centros de formação de jovens, que agora começam a chegar à seleção principal do Qatar, que este ano conquistou o primeiro título da sua história, a Taça da Ásia depois de vencer, na final, o Japão, por 3-1.
Mas até que a formação começasse a dar frutos, o governo promoveu uma política de naturalização de jogadores para permitir à seleção ser mais competitiva. O português Pedro Ró-Ró Correia é um desses exemplos na equipa campeã asiática, que entretanto está a participar na Copa América, como seleção convidada. Nesse lote de convocados pelo treinador espanhol Félix Sánchez, constam também três jogadores nascidos no Sudão, além de atletas de origem egípcia, somali, iraquiana e francesa.
Outra prova da evolução do futebol no Qatar é o facto de, quando a organização do Mundial 2022 lhe foi atribuída, a seleção ocupava o 113.º lugar do ranking FIFA e agora ocupa a 55.ª posição. E a tendência será para subir, a avaliar pelas exibições que tem conseguido na Copa América, que lhe valeram até agora um empate com o Paraguai e uma derrota com a Colômbia por apenas 1-0.