Putin vai tremer
Não foi tão apoteótico como em março. Mas os tiques propagandísticos continuam lá, bem entranhados no modus operandi de Vladimir Putin. Esta semana, depois de assinar os tratados de anexação de Donetsk, Lugansk, Kherson e Zaporíjia, algo equivalente a cerca de 15% da Ucrânia, o presidente russo apresentou-se num palco perto do Kremlin, onde decorreu um concerto musical, e presenteou os milhares de pessoas aí presentes com as mensagens de propaganda que pensa fazerem dele um líder mítico: "A vitória será nossa!", "Bem-vindos a casa!", "A Rússia não abre só as portas de sua casa às pessoas, ela abre o seu coração".
Há seis meses, Putin havia-se apresentado no estádio moscovita do Luzhniki, para garantir que a "Operação Militar Especial" na Ucrânia era para valer. A polícia falou, na ocasião, de 200 mil apoiantes nesse comício - o que não bate certo com a capacidade do estádio de 81 mil pessoas - e a música "Made in the USSR", do saudosista Oleg Gazmanov, ajudou à festa com o seu verso de abertura "Ucrânia e Crimeia, Bielorrússia e Moldávia, esse é o meu país".
Em ambos os comícios, o de março e o de setembro, Putin repetiu a narrativa sobre a criação da Ucrânia, reafirmando os direitos russos de propriedade histórica daquela nação. Agora, consumada a expansão da Rússia por via da anexação das quatro regiões, pela lei local e por mais nenhuma, Putin terá avançado na construção de algo semelhante ao "espaço vital" de Hitler, quiçá sonhando com o renascer de uma nova União Soviética. Aparentemente, os objetivos de março foram cumpridos e a Mãe Rússia prossegue no seu caminho inexorável, dona da verdade e certa do futuro.
Acontece que a história está longe de ter terminado. Olhando para dentro da Rússia, é notória a insatisfação crescente. Começou pelos oligarcas. Para além de verem os seus lucros astronómicos, oriundos do negócio da energia, reduzirem de forma drástica, enfrentam hoje um bloqueio internacional, que lhes arrestou as fortunas e os bens e os confinou ao seu país. Já não podem dar festas nos seus iates fundeados no Mónaco ou em Saint Barthélemy, nem continuar a diversificar os seus ativos no mundo Ocidental, justamente aquele que Putin apelida de "satânico e colonialista". Agora, com a mobilização parcial, é também o resto da população que se revolta. Os homens jovens da Rússia não são obviamente pessoas desprovidas de razão e de humanismo. Retirá-los das suas vidas e lançá-los para uma guerra em território hostil, onde, segundo reportes credíveis, são forçados a combater em condições operacionais muito precárias e a abater civis às centenas, terá sido um movimento mal calculado. O resultado está à vista, com hordas de pessoas a tentar deixar o país para fugir ao recrutamento. Putin levou a guerra para dentro da Rússia.
Olhando para fora, os riscos de generalização do conflito aumentaram, fazendo temer a possibilidade de uma nova guerra mundial. Por um lado, os recentes atentados aos gasodutos Nord Stream, independentemente de quem os protagonizou, suscitam uma ameaça real ao conjunto dos países europeus. Por outro lado, o pedido de adesão "rápida" da Ucrânia à NATO é um gesto que configura um desejo, por parte da Ucrânia, de resposta militar da Aliança Atlântica ao agressor russo. Sendo inverosímil que tal aconteça num tempo curto, não deixa de ser um sinal de que a situação pode ser explosiva e ninguém estará a salvo dos estilhaços.
Com tudo isto, não serão poucos os russos que gostariam de ver Putin cair do cavalo.
Professor catedrático