Purgatório perdido

Publicado a
Atualizado a

O "antigamente é que era bom", aplicado à política em países que passaram por ditaduras, pode ser perigoso. Cria saudosistas do fascismo onde há apenas saudosistas da juventude. Mas, com as eleições do próximo domingo, a Itália vai entrar numa espécie de maior idade, a sua 18.ª legislatura, tempo suficiente para que inteiras gerações de italianos possam ter saudades de um passado político que não coincide com o ventennio, as duas décadas nefastas de Mussolini.

As saudades preponderantes, até mesmo em grupos de eleitores que não se suspeitavam saudosistas, dizem respeito à chamada primeira República. Em Itália nunca houve uma transição nítida da primeira para a segunda República, mas parece que agora já se vai entrar na terceira e as cotações da primeira sobem. É nostalgia da época dos grandes partidos populares surgidos das cinzas da guerra; uma fase de confronto político em que, nas urnas, ganhava sempre a Democracia Cristã, quase sempre sem maioria absoluta, mas com uma enorme capacidade de criar maiorias parlamentares. A saudade, porém, é uma aldrabice: faz parecer Paraíso aquilo que, quando muito, foi um Purgatório.

O que é certo é que a lei eleitoral de 2017, encerrando duas décadas em que as maiorias parlamentares saíam das urnas mais claras, vai permitir o regresso a um tipo de Parlamento mais parecido com o da primeira República, com um peso maior da quota proporcional e a consequente necessidade de tecer alianças capazes de irem além das barricadas pré-eleitorais. As "grandes coligações", os "consensos alargados", as "geringonças" (mas a minha favorita é a fórmula antieuclidiana inventada pelo saudoso Aldo Moro: "convergências paralelas") em Itália foram a norma e não a exceção.

Considerando o radicalismo dos partidos que aparecem no boletim de voto de domingo, desde os soberanistas aos neofascistas (não se trata de velhos que confundem a saudade dos 20 anos com a saudade do ventennio, mas sim de jovens que sonham mesmo com uma nova invasão da Líbia, por exemplo), a situação de ingovernabilidade que se vislumbra nas sondagens é quase uma bênção. A mente vai logo buscar essa frase famosa de Mao Tsé-tung: "Grande é a confusão debaixo do céu, a situação é portanto excelente." E é quase automático recordar o passado maoista do atual primeiro-ministro, Gentiloni.

Se é notório que há mais ex-maoistas na classe dirigente europeia do que na chinesa, também é sabido que Gentiloni - pelo seu estilo discreto, mais calado e menos impulsivo do que o seu predecessor Renzi, um estilo que em Itália tem um adjetivo que é quase uma descrição antropológica, "democrata-cristão" - é bem-visto em muitos meios para um eventual transplante desta legislatura para a próxima. Só que nem o seu Partido Democrata nem a sua coligação estão à frente nas sondagens.

Do outro lado há mais dois grupos cujos líderes mexem os cordelinhos, mas não são candidatos. Beppe Grillo, fundador do Movimento 5 Estrelas, investiu Luigi Di Maio, um jovem sem qualquer currículo, mas que já trabalha para se dar um aspeto mais autónomo e disposto ao diálogo. Até já quis encontrar-se com o presidente da República, como se a vantagem nas sondagens o autorizasse a abrir as negociações. E temos o revenant Berlusconi, atrás de uma coligação da qual não poderá ficar à frente (enquanto inelegível pelas suas condenações), e que à frente não tem ninguém capaz de disfarçar essa incubadora de posições extremistas sobre refugiados e moeda comum que não só preocupam o resto da Europa como já conferem à atual legislatura o halo de Purgatório perdido. Este conjunto de partidos ganha nas sondagens enquanto coligação, mas há quem relembre que Berlusconi tem muitos amigos e velhos camaradas na coligação de centro-esquerda, já fruto de um consenso alargado.

Do ponto de vista da estabilidade sistémica, que é provavelmente o que interessa mais ao leitor português e sem entrar na complexidade das aspirações do eleitor italiano, faz falta um herói da traição que estenda a mão ao inimigo, ajudando a preservar o Purgatório e adiar o Inferno.

*Jornalista italiano freelancer

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt