Pure McCartney. O músico de exceção disfarçado de normal

Em quatro CD (na versão deluxe) surge aos nossos ouvidos a vida toda de Paul McCartney, sem a previsibilidade cronológica
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É um paradoxo que o mais importante Beatle vivo, Paul McCartney, tenha uma carreira a solo que sofra da desatenção geral e até de algum descrédito. Mas a nova compilação de Paul McCartney, Pure McCartney, sobretudo a edição deluxe de quatro CD, repõe alguma justiça face ao seu inegável ecletismo. De 1970, aquando da separação dos Beatles, até ao recente álbum New, de 2013, o percurso de McCartney está recheado de momentos de brilhantismo que Pure McCartney abarca na sua grande maioria, através de uma diagonal histórica, desligada de ordem cronológica, que permite uma maior imprevisibilidade ao ouvinte.

Já se sabe que o monumento The Beatles a todos soterra, sempre que se tentar uma comparação. McCartney não conseguiu no seu período pós-Fab Four a genialidade de The Fool on the Hill nem repetiu o impacto histórico de Yesterday, duas das suas preciosidades para a banda de Liverpool. Mas o seu perfil perdurou, como um homem do amor e da paz que vê, de forma incansável, a vida pelo meio copo cheio.

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Duas pessoas foram particularmente importantes no seu passado musical como ex-Beatle: o produtor e "quinto Beatle" George Martin (o seu pronto-socorro aquando das suas emergências orquestrais) e a mulher da sua vida, Linda McCartney, sua musa e companheira musical, e que Paul quis elevar como coautora de muitas das suas canções. Maybe I"m Amazed (de 1970) é uma convincente e exaltada declaração de amor à sua Linda, numa altura em que Paul McCartney tinha ainda aquele zelo de recém-convertido como músico a solo que tocava todos os instrumentos (baixo, guitarra elétrica, piano, órgão e até mesmo bateria). E ainda antes dos Wings, McCartney já fazia questão de dar cavalitas a Linda nas suas andanças musicais, tal como acontece com Another Day (de 1971), uma das suas melhores canções, ainda mal saída da grandiosidade beatlesca - e ainda bem.

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Sair dos eixos

Depois vieram dez anos de Wings, a banda do casal McCartney e de Denny Laine e aquilo foi uma acumulação de proezas, como Bip Bop (de 1971), um devaneio bluesy que pareceria à medida da voz de John Lennon; Nineteen Hundred and Eighty-Five (de 1973), tema de rock clássico com piano endiabrado, um final épico com arranjos orquestrais e um mellotron em sons circulares; e, claro, o maior êxito do grupo, Mull of Kintyre (de 1977), a homenagem folk de Paul McCartney ao local pitoresco onde se refugia na Escócia, com direito a gaitas-de-foles e uma ambiência familiar de pub.

Nos Wings, Paul McCartney também soube sair dos eixos e esquecer-se por momentos da paz e do amor entre todos. Ousou em Hi, Hi, Hi (de 1972) um andamento glam-rocker, onde canta sobre drogas e sexo. E experimentou em Jet um rock assertivo e surrealista, tocado com os nervos à flor da pele e com sofreguidão de banda de garagem. Também não está de fora de Pure McCartney outra das músicas emblemáticas dos Wings, Live and Let Die, o primeiro tema rocker a abrir um filme de James Bond. Com orquestração conduzida por George Martin, a canção tem uma grandiloquência sinfónica maior do que o que a canção vale.

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Nos anos 1980, e já sem os Wings, Paul McCartney soube infiltrar-se na era mais comercial da pop dos anos 1980, mas com uma elegância superior. Experimentou com sucesso duetos com dois dos grandes cantores afro-americanos, Stevie Wonder e Michael Jackson, respetivamente em Ebony and Ivory (de 1982) e Say Say Say (de 1983). Alguns arranjos soam hoje datados, mas a junção de forças entre dois cantores funcionou.

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Em Pipes of Peace (de 1983), ouvimos Paul McCartney próximo do seu melhor, aliando uma inocência nostálgica irresistível a alguma grandiloquência, num apelo à paz tão seu em que cita o famoso Natal de 1914 que uniu as tropas britânicas e alemãs na I Guerra Mundial (a que o famoso videoclip alude). Outro momento dourado dos oitentas é No More Lonely Nights (de 1984), balada rechonchuda direta para o ouvido, na qual McCartney alcança na atmosfera da canção o intimismo notívago sugerido pelo título. E We All Stand Together (de 1984), concebido para uma curta de animação, é mais um ataque de sinfonite aguda a Paul McCartney, ainda a recuperar do impacto de Pet Sounds dos Beach Boys ao fim de quase 20 anos, com a sua miscelânea de sons estranhos.

Pure McCartney relembra-nos que os feitos recentes de Paul McCartney podem misturar-se indistintamente com a glória mais longínqua. English Tea (de 2005) é uma canção pequenina e deliciosa, que funciona como uma pequena crónica da vida britânica. New (de 2013), de empatia imediata, destaca-se pela grande dose de otimismo que McCartney sabe tão bem injetar. E Save Us (também de 2013), que prefere o rock excêntrico e mais teatral, é uma lição de como os Muse deviam ser e não são.

Quase nada do que Paul McCartney fez de importante escapa a esta compilação bem encorpada. E isso é um grande mérito.

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