Pulgas amestradas e outros fenómenos

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Aqui há uns tempos, andava um sujeito na zona do Chiado com o que anunciava ser, num cartaz escrito a letras cada qual de sua cor, o "coelho-fenómeno". Este, branco com uma mancha negra no lombo, estava metido numa gaiola lamentavelmente pequena para o seu tamanho e, à voz do dono, saía de uma casinha ao canto da gaiola, para vir tocar com o focinho num pequeno sino pendurado nas grades. O "fenómeno" voltava depois para a casinha, enquanto o seu sorridente "empresário" ficava à espera que a generosidade dos transeuntes fizesse pingar umas moedas para um pires rachado.

Posto perante este modesto espectáculo de beira de passeio, senti-me transportado para o Chiado de meados e finais do século XIX, pois era aí que costumavam assentar praça outros fenómenos da categoria do coelho do sino. Nesses tempos escassos em entretenimento na capital, qualquer coisa, pessoa ou criatura que fugisse à norma ou à rotina era imediatamente taxada de "fenómeno" e tornava-se pasto da curiosidade pública, em geral a troco de alguns tostões.

Um desses fenómenos populares foi um anão de nome Mil-Homens, que outro remédio não teve senão transformar a sua pequena estatura numa pobre fonte de rendimento. Vinham pessoas de todas as condições sociais vê-lo, "querendo certificar-se de que o homem era homem e feito de carne e osso...", como deixou registado Mário Costa no seu precioso O Chiado Pitoresco e Elegante, de que mais uma vez me sirvo, para exumar figuras e histórias dessa Lisboa desvanecida para sempre, onde um anão era motivo de sensação e espanto.

As pulgas amestradas foram também, desses meados do século XIX até aos anos 20 do seguinte, um dos fenómenos mais regulares do Chiado e da zona da Baixa lisboeta. Segundo Mário Costa, em 1926,ainda se podia ver um circo de pulgas no Parque Mayer, e até assistir às refeições das "artistas" , que se alimentavam a horas certas nos braços da sua abnegada "domadora".

O primeiro - e "fenomenal" - circo de pulgas a instalar-se no Chiado foi trazido por um alemão chamado Esshiger, e era preciso usar uma lente de aumentar para ver actuar a minúscula trupe. Outro número animal que causou sensação à época foi o das chamadas "ratas sábias", sobre as quais o DN escreveu que eram "verdadeiramente fantásticos os exercícios" executados pelos roedores. Um dia, durante uma representação, deu uma veneta na rataria, que se cansou de ser sábia e desatou a fugir pelo 1.º andar do número 27 da Rua Nova do Carmo onde exibia os seus talentos.

Foi com o pensamento nessas "ratas sábias" que há duzentos e tal anos declararam independência do seu "domador" e fugiram Rua Nova do Carmo abaixo que deixei uma moeda no pires rachado do "empresário" do coelho-fenómeno. Fazendo votos para que este conseguisse também, um dia, fugir da gaiola com o pequeno sino pendurado nas grades, e voltasse a ser coelho, sem mais.

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