"Puigdemont está a tornar-se um problema até para o independentismo"
O diretor do Real Instituto Elcano, um dos mais influentes think tanks em Espanha, esteve ontem em Lisboa num debate sobre a Catalunha organizado pelo Instituto para a Promoção da América Latina e Caraíbas (IPDAL). Ao DN disse que o ex-presidente da Generalitat arrisca tornar-se "irrelevante" se ficar em Bruxelas.
Qual é, neste momento, o maior problema do governo espanhol: o independentismo ou Carles Puigdemont?
Evidentemente há um problema com Puigdemont. Ele surpreendeu todos optando por fugir e é curioso que o eleitorado tenha premiado o prófugo e não quem ficou e foi detido. Puigdemont, enquanto permanecer fora de Espanha, traz um elemento de incerteza muito grande e o governo não controla essa situação. Imagino que o governo preferia que ele se apresentasse na sessão de investidura. A situação é anedótica e a popularidade de Puigdemont vem dos atuais acontecimentos, não do que representa em si mesmo. De facto, não sabemos o que representa. O partido já não existe, a sua relação com a Esquerda Republicana é má... Estamos diante de uma pessoa que acreditou no seu próprio papel e está a tornar-se num problema até para os atores políticos catalães, até para o independentismo. E provavelmente é possível que se permanecer fora de Espanha passe a ser uma figura puramente anedótica.
Os independentistas deixaram cair em 2016 Artur Mas para seguir o processo. Podem fazer o mesmo a Puigdemont?
Se o independentismo perceber que Puigdemont é responsável por não se levantar o artigo 155.º pode voltar-lhe as costas. Pode decidir: és um herói, portaste-te de forma fenomenal, estarás sempre no nosso pensamento, mas és parte do problema e procuraste uma saída para a qual não nos consultaste. Ele não ouviu parte do partido. Não afasto um cenário relativamente próximo no qual lhe virem as costas, porque a vida continua e as organizações políticas têm a sua própria lógica. Acho que podemos ver movimentos internos a dizer-lhe: não queres voltar a Espanha, aceitamos isso, mas fica de fora e não nos chateies.
Um cenário completamente diferente se voltar a Espanha...
Se voltar converte-se num mártir. Os laços amarelos... bom, não haverá tecido amarelo suficiente para lhe dar as boas vindas. Se voltar as coisas mudam. E acho que haverá um momento em que ele vai pensar que tem que voltar, porque senão torna-se irrelevante.
Onde é que fica então a questão da independência catalã?
Continua a ser o problema de fundo. É preciso entender o que aconteceu para chegar a este ponto e ver o que se pode fazer para satisfazer as legítimas, não as ilegítimas, aspirações de quem pensa que a posição da Catalunha em Espanha não é satisfatória. Acho que o governo central tem que reconhecer que há aspirações legítimas. Podem ou não ser corretas, podem dever-se a perceções erróneas ou subjetivas, mas o governo tem que dar resposta. Isso tem um aspeto político, económico, mas também simbólico, afetivo. O problema é que os afetos não se restabelecem da noite para o dia, pelas situações que vivemos nas ruas, nos meios de comunicação, nas redes sociais... Vamos ser capazes de baixar a temperatura? Acho que sim. Se se puder baixar a tensão, quando houver a tranquilidade e a calma necessárias, o governo tem que pensar nas medidas que tem que tomar para facilitar que pelo menos os 20% de novos independentistas [que apareceram nos últimos anos] voltem a uma atitude mais construtiva.
Muitos catalães acham que Madrid quer humilhar a Catalunha. Esses 20% não serão uma reação a isso?
É muito subjetivo, mas não vejo nas autoridades espanholas essa ânsia de humilhar. Mas entendo que desde a perspetiva catalã possam sentir isso. Mas também há o outro lado. Inevitavelmente, quando o movimento independentista ganha esta força, os cidadãos do resto de Espanha sentem-se também feridos, rejeitados. Mas eu insisto em não demonizar os eleitores, porque as suas aspirações podem ser válidas. Podemos é demonizar os líderes, porque estão a manipular muitas vezes a opinião dos eleitores.
Falámos de Puigdemont, do outro lado está Mariano Rajoy. Disse no debate não acreditar que seja candidato nas próximas eleições. Porquê?
A mim surpreendia-me muito se fosse candidato. Quero ser justo com Rajoy. Acho que teve um papel importante, apesar de não tão importante como alguns dizem, na recuperação económica. Rajoy apanhou um momento muito difícil de crise, Espanha perdeu 10% da sua riqueza, o desemprego chegou aos 26%, aumentou a desigualdade, etc... ele enfrentou circunstâncias muito difíceis e manejou-as como pode. Mas sinceramente teria gostado que ele tivesse um papel mais proativo. Que dissesse, bom, tenho um projeto que se chama Espanha 2030. Vamos enfrentar os problemas de verdade, do envelhecimento da população, de que tipo de imigração vamos ter, de que tipo de modelo educativo queremos... Isto é, um projeto emocionante de vida em comum, como dizia Ortega y Gasset. Acho que esses 20% de que falámos, se virem que em Espanha há um projeto e que a sua identidade, os seus símbolos, sensibilidades e sentimentos são reconhecidos, podiam voltar a ter uma atitude muito mais positiva para com a sua pertença a Espanha.
Algumas sondagens dão o Ciudadanos à frente do PP, após a vitória na Catalunha...
O problema do Ciudadanos é que é um pouco um partido de um só tema. Nasce na Catalunha como resposta muito legítima às inquietudes de setores desprotegidos que se sentem excluídas do sistema catalão. Saltam para nível nacional, mas o discurso é muito duro e intransigente com o nacionalismo. Trocar o PP pelo Ciudadanos não resolve nenhum problema. Paradoxalmente, o PP pode ser mais adaptativo, com outro líder. O PP fez pactos com os catalães no passado. Não pensemos que o triunfo do Ciudadanos, se ocorresse, resolveria o problema. O Ciudadanos é mais instransigente na defesa de uma visão de Espanha que muitos catalães consideram problematica. Não há soluções fáceis. Depois há o PSOE, que sob a liderança de Pedro Sánchez está a ter muitas dificuldades para se consolidar como uma alternativa atrativa. A situação a nível nacional não ajuda. Mas provavelmente a médio prazo, a redefinição de tudo isto é mais fácil com um governo do PSOE do que com outro.
Disse que em 2010 o Tribunal Constitucional não foi muito independente na decisão sobre o estatuto de autonomia. E agora, é independente?
Em Espanha houve um debate sobre a judicialização da política e a politização da justiça. Muitos catalães tinham a sensação que o Tribunal Constitucional foi objeto de grandes pressões, em resultado do qual alterou partes do estatuto. De facto, o Constitucional estava muito dividido, mas também no Supremo Tribunal dos EUA raramente há unanimidade e isso não me parece grave. O que é certo é que a forma como se elegem os membros do tribunal é complicada, houve figuras concretas muito controversas, com relações políticas duvidosas, e isso deslegitimou a autoridade do Constitucional. Era isso que queria dizer. Na atualidade muitos independentistas pensam que a situação é igual ou pior, porque o Constitucional continua a eleger-se da mesma forma, o Supremo também, mas acho que se forem honestos e sinceros reconheceriam que é muito interessante que o Conselho de Estado se pronuncie como se pronunciou. Ou que tenha havido posturas muito distintas entre o procurador e o juiz Llarena do Supremo. Eu acho que se formos intelectualmente honestos isto é prova de liberdade. Também é verdade que dá lugar ao caos ou à confusão, porque as pessoas não entendem porque é que a lei pode dar lugar a interpretações tão distintas. Mas para ser justos o que estamos a viver é inédito.
Qual é o impacto da crise catalã na forma como Espanha é vista no estrangeiro?
A diplomacia espanhola fez um grande esforço para obter e receber o apoio explícito dos estados membros e das instituições europeias. Nenhum governo nacional dos outros estados membros pôs em dúvida a legitimidade da posição espanhola. É verdade que houve pequenos episódios no governo belga, porque é um governo de coligaçao e muito vulnerável neste âmbito. O governo está tranquilo nesse sentido e isso é algo que os independentistas não valoraram muito. Não há nenhum apetite para abrir essa Caixa de Pandora na Europa, porque atrás vem os escoceses, os corsos, etc..
Mas dizia no debate que num momento que Espanha devia estar a pensar e a ter um papel mais europeu, está centrado na Catalunha...
O ciclo eleitoral do ano passado era muito perigoso na Europa, com eleições em França, na Alemanha, na Áustria, mas o resultado foi bastante bom. Havia uma janela de oportunidade para que os três ou quatro grandes estados europeus - França, Alemanha, Itália e Espanha - se implicassem no relançamento da união. Conseguiu-se algumas coisas, mas o problema é que esta janela se começa a fechar. Haverá eleições europeias em 2019, uma nova comissão, e é preciso tomar decisões importantes este ano. Então, neste momento, Rajoy está a gastar mais tempo com este tema interno do que com os grandes assuntos europeus.