Publicidade na bandeira nacional causa polémica
Adenúncia de um cidadão levou à apreensão, pela PSP, de cem bandeiras nacionais com símbolos publicitários numa loja de electrodomésticos de Viseu. O Ministério Público está ainda a estudar o enquadramento legal do ilícito em causa. Ultraje a símbolo nacional, crime previsto no Código Penal, ou infracção ao Código da Publicidade são as duas hipóteses consideradas.
Mas é possível que as leis existentes não permitam caucionar o acto da PSP, já que seria necessário provar que a utilização da bandeira que causou a apreensão é depreciativa ou dolosamente desrespeitosa do símbolo nacional.
Outra questão que se coloca perante a acção da PSP de Viseu é a de igualdade de tratamento: três dias depois de a loja de electrodomésticos local ver as "suas" cem bandeiras apreendidas, o semanário Expresso oferecia a cada comprador uma bandeira onde se lê, no canto inferior direito, o nome do jornal e do patrocinador da oferta, o Banco Espírito Santo (BES). Um dos directores-adjuntos da publicação, Nicolau Santos, assegurou ao DN que "os advogados da empresa foram consultados sobre a iniciativa de marketing e não encontraram ali nenhuma utilização abusiva ou ofensa à bandeira". E acrescenta: "Também foi discutido o facto de estarem a ser publicados anúncios do BES com fotografias da bandeira feita com mulheres no estádio nacional e de ninguém ter levantado objecções a esses anúncios."
Hendrix, Pop Art e liberdade
Para o penalista Rui Pereira, está fora de causa um enquadramento criminal para estes factos: "O crime de ultraje aos símbolos nacionais, previsto no artigo 332.º do Código Penal, exige que se falte ao respeito devido ao símbolo, neste caso a bandeira, de forma dolosa. E não me parece que exista falta de respeito ao símbolo, que seja essa a intenção." Condutas dolosas de desrespeito e ultraje podem ser, exemplifica o coordenador da Unidade de Missão para a Reforma Penal, "o queimar da bandeira, ou colocar uma caveira com ossos de pirata no centro da mesma para simbolizar o carácter negativo de um Estado".
Mas Rui Pereira frisa que é necessário, nestas matérias, pisar com cuidado: "É preciso ver onde acaba a expressão artística, ou comercial, e onde começa o desrespeito." Citando casos célebres de apropriações polémicas de símbolos nacionais que acabaram por ser, apesar do seu carácter "de protesto", consideradas como legítimas dentro do domínio da criação artística - como o hino americano "desconstruído" pela guitarra eléctrica de Jimi Hendrix ou a série de bandeiras americanas pintadas pelo artista plástico Jasper Johns (um dos papas da Pop Art), dois casos de intervenção política na arte da década de sessenta do século XX-, o jurista questiona a necessidade de "uma regulamentação mais estrita", que no seu entender seria "contraproducente".
Comércio patriótico
Rui Pereira chama também a atenção para a utilização corrente da bandeira e das cores nacionais na propaganda política. "É muito comum usá-la nos cartazes. A candidatura do Dr. Mário Soares à presidência, por exemplo, usou-a com um coração no centro, em substituição da esfera armilar." Uma utilização que o penalista vê como natural: "Visa-se associar o candidato aos valores do país." Mas que poderia ser questionada, supõe-se, se em vez de um coração uma corrente política usasse um símbolo menos terno, como a suástica.
A saída será, aventa Rui Pereira, remeter a utilização abusiva de símbolos nacionais para o domínio das contra-ordenações. A actual lei da publicidade apenas proíbe "utilizações depreciativas" ou associações de símbolos nacionais a bebidas alcoólicas, mas o anteprojecto do Código do Consumidor, elaborado no respectivo Instituto e em fase de discussão pública, impede a utilização dos referidos símbolos em publicidade. Esta proibição poderá ter resultado da polémica surgida no início do ano a propósito de um anúncio da PT cuja banda sonora era o hino nacional. Foram apresentadas várias queixas ao Instituto do Consumidor e ao provedor de Justiça, que em Maio solicitou ao Governo que clarificasse o enquadramento legal daquela utilização.
"Pai, porque é que toda a gente anda com a bandeira da selecção?" A pergunta, atribuída uma menina de seis anos, ilustra aquilo que Rui Pereira admite ser "o paradoxo de popularidade da bandeira nacional". Da rigidez tradicional de símbolo apenas utilizado em cerimónias oficiais à apropriação entusiástica das multidões de que o Euro 2004 foi expoente, o pendão tornou-se um apetecível elemento de marketing. Vem com o território, como se costuma dizer.