PSP acusado de racismo: "Estou desiludido. Não consigo desempenhar mais as minhas funções"
Renato Fernandes, um dos agentes da PSP acusado de tortura e racismo, está "desiludido com a sociedade". Confessou-o, voz embargada, à juíza do tribunal de Sintra que lhe perguntou porque se encontrava de "baixa médica", quando estava a ser ouvido na segunda sessão do julgamento dos 17 polícias, que decorreu esta segunda-feira. "Vim para a polícia para ajudar as pessoas e vejo-me nesta situação. Estive várias vezes para entregar a farda e a carteira. Não consigo desempenhar mais as minhas funções. Fui a uma ocorrência normal e vejo-me numa situação destas, com os meus sonhos destruídos", desabafou Renato, que estava apenas há uma semana a fazer patrulhas na Cova da Moura. Renato Fernandes está de "baixa psicológica" desde agosto de 2017, cerca de um mês depois de ter vindo a público a acusação do Ministério Público (MP).
Ele e os outros 16 colegas respondem por denúncia caluniosa, injúria, ofensa à integridade física e falsidade de testemunho, num caso que remonta a 05 de fevereiro de 2015, por alegadas agressões a jovens da Cova da Moura na esquadra de Alfragide, estando ainda acusados de outros tratamentos cruéis e degradantes ou desumanos, de sequestro agravado e de falsificação de documento. Na sua acusação MP considera que os agentes agiram com ódio racial, de forma desumana, cruel e tiveram prazer em causar sofrimento.
"Negativo, negativo, negativo", repetia Renato às perguntas sobre se tinha agredido, injuriado, visto alguém a fazê-lo contra os seis jovens detidos (um detido no bairro, os outros cinco por, na versão da PSP, tentarem invadir a esquadra). "Não sou desse tipo de pessoas, Sra. Juíza", sustentava. Sincronizadamente, os três arguidos ouvidos nesta audiência mantiveram a versão que foi dada na investigação da Inspeção-Geral da Administração Interna (IGAI) e que resultou no levantamento de nove processos disciplinares, sete dos quais arquivados, dois com proposta de sanção mas ainda em recurso da defesa.
Segundo esta versão, a carrinha da Equipa de Intervenção Rápida (sete elementos) que fazia a patrulha na Cova da Moura foi apedrejada, um suspeito foi detido e levado para a esquadra. Depois, um grupo de jovens - entre os quais Flávio Almada e Celso Lopes, mediadores da Associação Moinho da Juventude, que presta apoio social na Cova da Moura - tentou invadir as instalações da esquadra, tendo cinco deles sido detidos. Alegam que no bairro só foi disparado um tiro para o ar, para dispersar alguns moradores que atiravam pedras e garrafas, e negam que tenham sido os autores dos disparos de shot-gun, com balas de borracha, que atingiram duas moradoras.
Nunca se queixaram
Luís Anunciação, o chefe da PSP que comandava a esquadra e que a IGAI concluiu que tinha prestado falso testemunho nos autos que redigiu sobre os acontecimentos, foi perentório: "Se fosse hoje escrevia exatamente o mesmo", asseverou. Anunciação garante que havia "entre 20 a 25 indivíduos a atirarem pedras à esquadra" e que Flávio e Celso foram os primeiros a tentarem "invadir". Sobre a detenção de Rui Moniz, um jovem com deficiência numa das mãos em consequência de um AVC, Anunciação confirmou que foi ele próprio a fazê-la, porque o viu "escondido" junto à rotunda em frente à esquadra e que os colegas lhe disseram que "era um dos que estavam a atirar pedras". "Quando o confrontei ele disse-me mesmo que estava a tentar filmar os acontecimentos, mas não tinha conseguido", recordou.
O ex-comandante, que agora está colocado na divisão da PSP do aeroporto, assegurou ao tribunal que os jovens, nessa ocasião ainda arguidos, "nunca se queixaram, nem pediram para ir ao hospital". No entanto, como lembrou a advogada dos jovens, Lúcia Gomes, "no auto de notícia que redigiu, escreveu: 'em virtude dos detidos se queixarem de dores diversas foi acionada uma ambulância dos bombeiros'". "Mas eles só se começaram a queixar quando chegaram os bombeiros", respondeu o chefe, corroborando o que já tinha sido dito antes por outros agentes sobre Celso Lopes, atingido na perna com um bago de borracha da shot-gun. "Ele nunca se queixou. Esteve sempre com a mesma postura".
Nesta sessão a defesa começou a tentar desmontar a acusação, focando-se na investigação da PJ que a sustentou, conduzida pela Unidade Nacional de Contraterrorismo (por haver indício do crime de tortura o MP remeteu o caso para esta equipa). O contra-ataque foi essencialmente dirigido às perícias sobre os disparos na Cova da Moura e sobre os reconhecimentos dos agentes feitos pelos jovens. Os arguidos têm dito que só foi feito "um único disparo para o ar" no bairro para dispersar a multidão que atirava pedras e garrafas à carrinha, os peritos da PJ sustentam, com provas materiais e testemunhas, que foram feitos mais disparos, dois deles em direção a duas moradoras que ficaram feridas. A PJ desmente também que o local da da detenção seja o que os polícias alegam. A defesa dos agentes nega que a PSP utilize os cartuchos recolhidos pela PJ e confrontado pela juíza sobre como se explica os ferimentos nas moradoras na mesma altura, o chefe Anunciação recordou que "já foram apreendidas no bairro armas iguais às da PSP".
Quanto aos reconhecimentos feitos na PJ, os agentes revelaram que, apesar de no dia dos incidentes estarem sempre fardados, foi pedido para estarem à civil. "No meu caso, nenhum dos inspetores da PJ que estavam comigo na sala tinham as minhas características e eu era o mais alto", disse Anunciação. Questionado porque não tinham reclamado logo, uma vez que se trata de um procedimento crucial numa investigação e que não pode deixar margem para dúvidas, o chefe encolheu os ombros. "Não nos apercebemos do erro na altura, reconheço. Fomos mal aconselhadas e foi também por isso que mudámos a equipa de advogados", afirmou.
Os três arguidos ouvidos confirmaram a presença naquele dia na esquadra de três oficiais, entre os quais o comandante da esquadra e do comandante de operações do Comando Metropolitano de Lisboa (COMETLIS), Luís Moreira, o número três da hierarquia da PSP na capital (que designavam por "C3"). Segundo os agentes Renato Fernandes e Paulo Santos, o superintendente Moreira foi "dar os parabéns ao pessoal pelo serviço", mas o chefe Anunciação corrigiu: "Foi inteirar-se se tinha havido algum abuso na nossa ação". Segundo estes polícias, os detidos podiam ter falado com ele, caso tivessem achado necessário. Outra figura, cuja presença na esquadra, tem sido sempre referida pelos polícias, é a de um advogado, André Pereira, que faz parte da equipa de Lúcia Gomes e estava também no tribunal. De acordo com os PSP este advogado esteve sempre com os detidos. "Porque é que não disse logo aos oficiais que lá foram que tinham havido agressões e racismo", questionou Anunciação. Lúcia Gomes lembrou que a denúncia sobre esses crimes deu entrada no MP logo no "próprio dia".
Apesar de alguns momentos de tensão, principalmente quando eram confrontados por Lúcia Gomes com as contradições nas suas declarações, os agentes saíram da sala notoriamente satisfeitos. Ouviam-se palmadas sonoras nas costas que recebiam de camaradas que os tinham ido apoiar. "Grande Renato, é isso mesmo!", dizia um deles enquanto se abraçavam. À saída do tribunal tinham à espera, para os transportar, uma "velhinha" carrinha azul da PSP. Talvez tão velhinha como a "rainha", como a chamou o chefe Anunciação, a "única carrinha do comando da Amadora", que os levou naquele dia fatal à Cova da Moura.