PRR esquece gestão de resíduos urbanos
Tem-se falado muito na proposta de Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), que irá enquadrar a utilização de cerca de 13.944 milhões de euros em subvenções e 2.699 milhões em empréstimos, até 2026. A este envelope financeiro, juntar-se-ão os fundos estruturais do Portugal 2030, que ascendem a cerca de 24 mil milhões de euros até 2027. Estas disponibilidades financeiras, únicas na História de Portugal, recomendam que se faça uma reflexão profunda da sua aplicação, de modo a ultrapassar algumas das deficiências crónicas do País.
O PRR contém uma aposta muito forte em múltiplos serviços públicos, da saúde à educação, passando pelas florestas, justiça, gestão hídrica, habitação, infraestruturas públicas, etc. Porém, há um serviço público essencial que está praticamente ausente do PRR, a nosso ver incompreensivelmente: o serviço público de gestão de resíduos urbanos.
Se outras razões não houvesse, os desafios gerados pela presente crise pandémica seriam suficientes para mostrar a relevância deste Setor para a garantia da saúde pública e da salubridade em todo o espaço nacional, ou seja, para a Resiliência efetiva do País às adversidades.
Acresce que apesar da evolução extraordinária que toda a cadeia de valor da gestão de resíduos teve em Portugal nos últimos 20 anos, unanimemente reconhecida, é inquestionável que subsistem estrangulamentos no setor que, há vários anos, impedem que o setor se projete para um novo patamar de qualidade e exigência na prossecução dos objetivos da Economia Circular. Sem prejuízo de marcadas diferenças regionais, que não podem ser esquecidas numa análise mais fina, parece-nos que, genericamente, se podem apontar os seguintes estrangulamentos do Setor:
i) A produção de resíduos urbanos em Portugal tem aumentado continuamente (à exceção dos anos de crise económica), de modo a que os objetivos de redução da produção de resíduos nunca foram cumpridos.
ii) A fração de resíduos urbanos efetivamente reciclados mantém-se abaixo de 25% dos resíduos produzidos, o que é muitíssimo inferior ao necessário para o cumprimento das metas europeias a que o país está vinculado: 55% da totalidade dos resíduos urbanos em 2025, 60% em 2030 e 65% em 2035.
iv) A fração de resíduos urbanos enviada para aterro sanitário é muito elevada (57,8% dos cerca de 5 milhões de toneladas de resíduos urbanos produzidos em 2019), muitíssimo acima da obrigação de um máximo de 10% que as Diretivas sobre Economia Circular impõem.
v) Uma forte dependência de opções tecnológicas feitas no passado, cujo desempenho é claramente inferior ao esperado, como as instalações de Tratamentos Mecânicos e Biológicos-TMB. Estas tornar-se-ão obsoletas a partir de 1 de janeiro de 2027, uma vez que os resíduos urbanos biodegradáveis deixarão de ser considerados como reciclados se não forem recolhidos seletivamente.
vi) Um enquadramento regulamentar e institucional do setor excessivamente complexo, por vezes impreciso quanto ao papel e responsabilidades dos vários stakeholders e, por isso, indutor de elevada conflitualidade e de forte limitação à sua flexibilidade e eficiência.
Este diagnóstico, necessariamente breve, revela dificuldades estruturais que, infelizmente, se têm arrastado no tempo e que o PRR não considera. Em nossa opinião, importaria acautelar um envelope financeiro adequado a uma profunda alteração estrutural do setor, em particular com enfoque nas seguintes áreas:
a. A recolha e valorização de biorresíduos que se deve generalizar até 31 de dezembro de 2023.
b. Das 21 unidades de tratamento de Resíduos Urbanos Biodegradáveis existentes, 16 estão acopladas a unidades de Tratamento Mecânico, formando as chamadas instalações de Tratamento Mecânico Biológico que, como se referiu, se tornarão obsoletas durante a próxima década. É essencial acautelar a reconversão destas unidades de modo a que as respetivas instalações de tratamento biológico passem a ser utilizadas para a valorização dos biorresíduos recolhidos seletivamente e para continuar a pré-tratar os resíduos indiferenciados durante o fase-out da recolha indiferenciada, que será inevitavelmente longo.
c. Sabemos com clareza que há sempre uma fração de resíduos urbanos que não é reciclável com qualidade e cuja única alternativa é valorização energética. Infelizmente Portugal está longe de possuir a capacidade necessária para valorizar integralmente essa fração. A consequência é o enorme envio de resíduos para aterro e, a prazo, será a dependência do país relativamente ao exterior para o tratamento desta fração dos resíduos, ao arrepio dos princípios de autossuficiência e proximidade, contemplados na legislação europeia e nacional.
Estas parecem-nos ser as principais áreas que importaria acautelar nos programas de apoio financeiro e que, pelo menos no PRR, não conseguimos identificar.
O presidente do Conselho de Administração da LIPOR