Pedro Caldeira: O yuppie português

Pedro Reis Fernandes Caldeira, a quem já chamaram "A Dona Branca da Bolsa" ou "Dona Branca dos ricos", nasceu em Sobral de Monte Agraço, em 1950.
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"Take good care of this guy. He is a gentleman" - não estávamos lá para ver ou ouvir, mas, garante ele, foi com esta frase simpática que o FBI o entregou na Penitenciária de Douglasville, Geórgia, depois de o ter detido às dez e meia da noite de 19 de Março de 1993 - Dia do Pai -, no quarto 4031 do Hotel Marriott Marquis, de Atlanta, onde se encontrava hospedado na companhia da mulher e dos dois filhos pequenos.

Ao que parece, a operação foi conduzida com certa violência, com os agentes federais de armas em punho, na iminente captura do que julgavam ser um perigoso gangster transnacional, fugido com 33 milhões de dólares - tal era a informação recebida da Gomes Freire, Lisboa. No quarto 4031, porém, depararam com uma pacata família portuguesa, embrulhada nos lençóis, a verem juntos um filme do Eddie Murphy (por sinal, o Boomerang), depois de terem ido jantar ao Hard Rock Café, por sugestão dos miúdos. No cofre, 15 mil dólares, uma miséria.

Horas ou dias depois, entrou em cena outro artista, Mário Crespo. Trinta anos volvidos, o que hoje se oferece dizer sobre o então sucedido com Mário Crespo é tão-só o seguinte: Mário Crespo será seguramente um grande jornalista, um rosto maior dos nossos écrans televisivos, um profissional competente e respeitado, mas, quanto a reconstituições de cenas de crime, deixa muito a desejar. Na altura correspondente em Washington, Crespo voou até Atlanta e aí simulou a entrada do Federal Bureau num quarto do Hotel Marriott. Tenhamos presente que, além dos cinco ou seis agentes do FBI, também lá estava a família Caldeira inteira, quatro elementos, o que perfaz umas nove, dez pessoas no interior do 4031. Sendo um só, Mário Crespo, teve de desempenhar nove papéis em simultâneo - e ademais numa questão de segundos, para dar realismo e emoção à coisa.

Não encontrei a reportagem nos arquivos da RTP, mas cem anos que eu viva: num quarto mergulhado na penumbra, um vulto em contraluz, de óculos e microfone, a gesticular arfante, a esbracejar todo eléctrico, a puxar e a arrancar as cobertas da cama, a revolver os lençóis e os edredões, a atirar almofadas para cá e para lá, como se estivesse possuído pelo demo ou num sketch do Benny Hill. Tratou-se, lamentamos dizê-lo, da pior reconstituição policial de que há memória na já longa história do canal público.

Pedro Reis Fernandes Caldeira, a quem já chamaram "A Dona Branca da Bolsa" ou "Dona Branca dos ricos", nasceu em Sobral de Monte Agraço, em 1950, e é filho único de uma doméstica, Maria Clementina, Titina, e de um oficial do Exército, Fernando Caldeira, cujos pais eram professores primários na Aldeia da Zebreira, Beira Baixa. Em novo, muito criança, foi com a mãe até Moçambique, onde seu pai, então capitão, já estava colocado como oficial da CIFRA, em comissão de seis anos. Datam daí as suas primeiras memórias, dignas de Out of Africa, que o futuro corretor contou à jornalista e amiga Manuela de Sousa Rama para o livro Pedro Caldeira: Tempo de Ser Claro (Ed. Notícias, 1996).

Estiveram primeiro em Nampula, depois em Lourenço Marques, lembrando-se Pedro de que, às noites, o pai lhe lia trechos de Kurika, de Henrique Galvão, que depois, durante o dia, ele testemunhava ao vivo. Viu um leopardo morto numa caçada e tornou-se, ele próprio, caçador intrépido de pássaros, cobras e lagartos nas machambas da actual Maputo, onde chegou a apanhar febre tifoide, quase morrendo. Por companheiro, o mainato da casa, Vicente.

Frequentava então o Liceu Salazar e o pai incutira-lhe o gosto pela leitura, medrado à base de uma pequena biblioteca feita com sugestões que Fernando Caldeira, quando era instrutor em Mafra, pedira a um soldado-cadete literato, David Mourão-Ferreira. Graças a este, Pedrito conheceu os escritos de Hernâni Cidade, Oliveira Martins, António Sérgio, Raul Brandão, Jaime Cortesão e o citado Galvão, leituras que, na adolescência, complementou com leituras de Pascal, de Descartes e de Bertrand Russell.

Em 1956, regressados mãe e filho à metrópole, foram morar em Caxias, enquanto o pai cumpria incessantes comissões de serviço pelo Ultramar: Angola, Moçambique, Guiné, Cabo Verde. Ao retornar de uma delas, e decerto impressionado pelo que lá vira, Fernando fez o filho jurar que jamais seguiria a carreira das armas, coisa que este acatou, abdicando dos planos, que então fazia, para se inscrever na Academia Militar. Em Outubro de 1962, ao frequentar o 2.º ano da delegação de Algés do Liceu de Oeiras, conheceu Henrique Linhares de Andrade, um amigo para a vida, ou quase, que com ele trabalharia na sua famosa sociedade de corretagem, até ao dia em que, estoirada a bomba, Linhares decidiu apresentar queixa na Judiciária contra o antigo colega de escola - por burla agravada e abuso de confiança.

Pedro Caldeira sempre foi um aluno médio, com dificuldades nas Matemáticas, que venceria com esforço e sucesso. Aos 13, 14 anos, aprendeu a jogar póquer e, de uma forma ou doutra, prosseguiu vida fora a fazer fortuna com o dinheiro dos outros. À paixão por Luther King juntava a de grandes personagens históricas, cujas biografias lia com desvelado afinco, revelando já então, diz a sua biógrafa, uma enorme atracção pelo poder e os poderosos. Não podendo conhecê-los, conhecia os seus descendentes: aos 17 anos, travou contacto com a neta de Sarmento de Beires; aos 19, com a família de Carlos da Maia e, não muito depois, com Bejuja, petit-nom que talvez não quadre bem numa neta do doutor Afonso Costa.

Concluído o liceu, a custo e a cuspo, matriculou-se em Engenharia Mecânica, na Faculdade de Ciências, depois mudou para o Técnico, mas não passou além de umas cadeiras do 2.º e do 3.º ano. Entretanto, em 1972, António Caldeira, que herdara uma carteira de títulos de um tio (e que, apesar do apelido, não era da sua família), convidou-o a ir à velha Bolsa de Lisboa, que o marquês fizera erguer no piso térreo do torreão nascente da Praça do Comércio. Pedro ficou fascinado.

Quando lá voltou, Abílio de Sousa, um primo seu por afinidade, convidou-o para seu "proposto", um adjunto do corretor que, quando é necessário, o substitui nas suas falhas e impedimentos. Em 16 de Maio de 1973, após ter assinado a declaração de que não era comunista, foi oficialmente nomeado "proposto" por despacho governamental.

Nesse mesmo ano de 1973, e ao fim de poucos meses de namoro, casou-se com Maria Cristina Viyella de Souza Mattos, uma força da natureza: de pai português e mãe basca, da zona de San Sebastián, nascera por acaso em Almada, numa quinta paterna, mas passou os primeiros 17 anos de vida em Espanha. Aos 18 já estava instalada em Cascais, onde começou fazendo serviços de baby-sitter e se tornou empregada da loja Tara, uma boutique da moda, facto que lhe permitiu tornar-se independente e, facto raro na época, ir morar sozinha. Foi ela quem tomou a iniciativa de telefonar a Pedro, desafiando-o para saírem juntos. Ele propôs tomarem um chá no Muchaxo e meses depois, a 8 de Dezembro de 1972, casavam-se na Igreja de Santa Maria, em Sintra.

Através da mulher, Pedro conheceria João Mexia de Almeida, cuja mulher, Aida, era umas das maiores amigas de Cristina e, desde então, os dois casais ficariam juntos para todo o sempre, ou quase, partilhando festas, jantares, férias no Sul de Espanha. Foi na casa de Mexia de Almeida que Pedro conheceu Jorge Espírito Santo e Jorge de Brito, dois nomes grandes dos negócios do final do Estado Novo.

À época, já Pedro Caldeira conhecia gente importante, como Eduardo Furtado, presidente do Pinto e Sotto Mayor e braço direito do mítico Champas, Jorge de Brito ou Jorge Figueiredo, e ganhava um excelso ordenado, ao qual não foi alheio o boom registado na Bolsa em Novembro e Dezembro de 1973, nas vésperas da revolução. Chegava a fazer 100, 200 contos por mês, uma fortuna na altura, di-lo na biografia atrás citada, mas, noutros lugares, refere um ordenado de uns bem mais modestos 10 contos, ainda assim quase o dobro do que ganhava seu pai nas comissões de serviço em África (cf. Visão, de 12/6/2013).

Passado o susto do choque petrolífero, a Bolsa voltou a animar no ocaso do marcelismo, continuando, porém, a ser um lugar pachorrento e paroquial, onde todos se conheciam: o velho Serrão Franco, que mantinha o vigor de mulherengo, pese ter 80 anos ou mais; Abílio de Sousa, o patrono de Caldeira; Valentim Lourenço, "velha raposa", benfiquista dos quatro costados; Eduardo Roquette Ricciardi ("um senhor", dixit Pedro, ao que parece a grande paixão de Amália) e o então jovem Medeiros, o "corretor dos pobres", que, timidamente, pedia aos grandes para gritarem por ele as ordens de compra e venda. Entre as empresas cotadas, velhas glórias estado-novistas - a TAP, a Siderurgia Nacional, a Lisnave, a Setenave, a Tabaqueira, a Mabor -, mas também firmas com nomes curiosos: as seguradoras Atlas, Douro, Prudência ou Soberana, os bancos da Agricultura, do Alentejo, do Algarve, de Angola, quase parecendo coisa do Monopólio.

Começava-se a trabalhar cedinho, em jornadas extenuantes, cigarros atrás de cigarros, uma vozearia tremenda, cafezinhos no Martinho, e só se parava por volta das quatro, cinco da tarde, com um almoço repousante no Atrium ou no Belcanto, regado a Barca Velha, nos dias felizes, e rematado com dois ou três JB de malte. Os investidores ganhadores acabavam o dia festejando no Nina ou no Tamila; os que perdiam, regressavam a casa de orelha murcha e olhar tombado, ardendo pelas legítimas. Quem passava as manhãs na velha sala do Terreiro do Paço, de olhos postos nas cotações, às vezes só por desporto, fazia-o com o mesmo espírito com que ia à Casa da Sorte (ou com que, mais tarde, acorreria en masse à Dona Branca ou ao Bingo do Sporting): falava-se em "jogar na Bolsa", ou em "apostar na Bolsa", como se tudo não passasse de um casino, que em parte o era e é, em Portugal e em toda a parte do mundo.

Com o deflagrar da revolução, a Bolsa seria encerrada logo no dia 29 de Abril de 1974, por ordem directa da Junta de Salvação Nacional. Pedro, que até aí fora um conservador tradicionalista, nas palavras da sua biógrafa, converteu-se aos ideais socialistas, em prol da "justiça social" e da "redistribuição da riqueza". Já em meados de 1979, "desiludido com a corrupção", decidiu regressar ao redil direitista.

Com a Bolsa fechada, foi convidado para ingressar no Banco de Portugal, mas declinou, preferindo permanecer com Abílio de Sousa, que estava nas lonas. A dada altura, acabou no desemprego, e assim se manteve durante quatro longos anos: abriu uma empresa de recortes de imprensa, hoje chamada de clipping, cujo primeiro e fervoroso assinante foi Mário Sottomayor Cardia, ministro da Educação, e que teve como clientes a Presidência da República, o Governo, o Conselho da Revolução, diversos ministérios, mas onde não ganhava para os gastos; a seguir, montou uma bem-sucedida empresa no ramo da alta-fidelidade, que fabricava as colunas de madeira para as grandes marcas de som, enquanto Cristina permanecia nos trapos, inaugurando uma exitosa loja de roupas de senhora, a Cachet, em Cascais. Arrendaram então uma casa em Birre, na Rua das Glicínias, com dois terços da renda pagos pelo pai de Pedro e uma multidão de animais: aves de capoeira, dois pastores-alemães (Pequê e Zambi), um caniche-anão (Putschi), uma golden retriever aluada, primeiro chamada Papaia, depois mudada para Burra. Em 24 de Abril de 1978, no Hospital Particular, de Lisboa, nasceu Bárbara, concebida numas férias em Maiorca, meses antes.

Enquanto isto ocorria, a Bolsa também lá ia, mas fraquinha, moribunda, ainda em convalescença dos tempos do PREC, com apenas três corretores, Abílio de Sousa, com quem Caldeira voltara a trabalhar, Eduardo Ricciardi e Valentim Lourenço, que, por se encontrar doente, pediu a Abílio que lhe emprestasse o seu jovem e promissor "proposto". À mesa do Martinho da Arcada, Valentim sugeriu a Caldeira que fosse trabalhar com ele, garantindo que daí a três anos se reformaria e que o escritório do n.º 138 da Rua de São Julião ficaria seu. Pedro nem hesitou.

Em 1981, nasceu o seu filho Pedro (hoje decorador de interiores e gestor da Airbnbs) e, por certo bafejado pelo alívio trazido pelos governos da AD, o negócio de Cristina ia de vento em popa, com incessantes viagens às feiras da moda de Paris, Milão, Madrid. Passavam os verões em Marbella.

Pedro Caldeira, que trabalhou como "proposto" de Valentim Lourenço entre 1981 e 1983, foi nomeado, em Julho desse ano, corretor oficial da Bolsa de Lisboa. Nas fotografias, vemo-lo apetrechado com as ferramentas do ofício: o primeiro computador, enorme; o primeiro telex; uma telecópia; um terminal da Reuters. Começou então a receber em Lisboa estrangeiros interessados em investir em Portugal, como Jim Rogers, que em 1973 fundara a Quantum Fund, com George Soros, e que queria fazer um blind investment nas empresas cotadas em Bolsa, comprando 1000 contos de cada.

Em 1985, com apenas 35 anos, Caldeira foi eleito pelos seus pares Síndico da Bolsa de Valores de Lisboa, um lugar prestigiante e respeitado. O seu nome já era então citado no Herald Tribune e Pedro sugeriu a Tavares Moreira a elaboração de uma lei que remodelasse a velha legislação bolsista, datada de 1901, nomeadamente para permitir o comércio não apenas de acções, mas também de obrigações. Fora nestas últimas, aliás, que fizera o seu grande negócio, obtendo uma comissão de mil contos pela venda de um milhão de contos de obrigações FIP 79. O retrato que traçou da Bolsa da altura era, de resto, bem expressivo: enquanto se transaccionavam milhões por dia em obrigações, as acções não passavam de uns ridículos mil ou dois mil contos diários.

À semelhança do que ocorria no Estado Novo, a informação sobre os negócios era "privilegiada" num duplo sentido: por um lado, porque dizia respeito a factos reservados e dados secretos; e, numa acepção mais literal, mas bem portuguesa, porque só estava ao alcance de uns quantos privilegiados, ou já de si privilegiados, que se cruzavam entre si numa endogamia paroquial e caseira feita de laços de sangue, afinidades electivas, cumplicidades de cama, partilha de redes de sociabilidades. Trabalhar ou investir na Bolsa não se resumia a cumprir um horário das sete da manhã às cinco da tarde; exigia, mais do que isso, uma vida social preenchida, a frequência dos lugares e dos ambientes d"elite. Quando vemos Pedro e Cristina Caldeira em festas e em jantares, ao lado de Margarida Prieto, vestida por José Carlos, e do seu marido, Manuel Damásio, ou de Maria João Quadros, a Feijão, ou de Nucha e Rui Guedes (esse mesmo, o do Topo Gigio), vemo-los a divertirem-se, sem dúvida, mas também a trabalharem, num labor ascensional incessante, que se prolongava numa tertúlia que se reunia diariamente, ao final de tarde, entre as seis e as oito. Era composta, di-lo a biógrafa de Caldeira, pelos irmãos Bettencourt, por Carlinhos Vilhena, por Gica Ortigão Ramos, por Manecas Souza Vieira, pelos irmãos Infante da Câmara e por D. Juan de Bourbon, inter allia:

"Pedro é o mais jovem do grupo. Os outros, os velhos senhores do Estoril, estão na casa dos quase 60 anos, reformados do Grupo Espírito Santo, dos Mellos, empresários, financeiros. Os desapossados das suas herdades no Alentejo, vítimas de ocupações selvagens.
Falam de política e negócios, contam anedotas, jogam aos dados. Bebem
whisky e trincam castanhas de caju".

Reuniam-se primeiro num barzinho do Estoril, o Jacques, mas depois mudaram para o Cutty Sark, em Cascais, onde pontificavam Jorge Arnoso e Adelaide. Mais tarde, quando Tomás Branquinho da Fonseca inaugurou a Casa do Largo, transferiram-se para lá, com novas aquisições - Jorge Figueiredo e José Almeida Araújo - e um novo passatempo, o gamão. Entretanto, Pedro Caldeira, um eterno homo ludens, cometeria proezas noutros tabuleiros, conquistando, imagine-se, o jackpot do Totoloto, um frondoso prémio de 12 mil contos, com o qual compraria a casa de Birre e, para os pais, um apartamento no Monte Estoril. Em 1986, no antigo espaço da loja Tara, onde começara a trabalhar aos 18 anos, Cristina abriu a Surprise, requintadíssima, que vendia roupas de marca, como Per Spook, Lanvin, Pool Position ou George Rech, às mulheres daqueles com quem o marido fazia negócios. A sinergia perfeita.

Em meados de 1987, Abílio de Sousa e Pedro Caldeira controlavam cerca de 80% do mercado bolsista português, ainda incipiente e mortiço, é certo, mas em frenesi expansionista (entre 1985 e 1986, diz Caldeira, o movimento da Bolsa aumentara, pasme-se, 1117%). À porta do escritório do "corretor da moda", na Rua de São Julião, formavam-se filas quilométricas, que davam a volta ao quarteirão e seguiam, gente que esperava horas, sentada em cadeiras trazidas de casa, só para comprar acções, mais acções. Gente que em Pedro depositava o dinheiro e a confiança, na mira de muita ganhança.

1987, o ano do pensamento mágico, aquele em que Oliver Stone realizou Wall Street, em que Tom Wolfe publicou A Fogueira das Vaidades e em que decorria a acção de Psicopata Americano, de Bret Easton Ellis, o retrato de um banqueiro serial killer, Patrick Bateman, também levado à tela tempos depois. 1987 foi também o ano em que a bolsas mundiais, Lisboa incluída, deram um trambolhão valente, como ciclicamente sucede: ao fim de tantos séculos e de tantas vicissitudes, já era tempo para perceber, de uma vez por todas, que, por mais "supervisão" e regulação" que se façam, os estoiros e as fraudes são estruturalmente inerentes à actividade bolsista, já que esta assenta na promessa de fortunas colossais e rápidas, feitas com engenho e sorte, mais do que com esforço, e, por isso, jogar e apostar até ao limite, ou para lá dele, será sempre irresistível para a cupidez dos humanos. Por isso, e como já notava Max Weber em Die Börse, de 1894, o essencial é garantir a boa-fé da organização bolsista e a "honestidade indiscutível" dos que nela intervêm (cf. Max Weber, A Bolsa, trad. portuguesa, Relógio D"Água, 2004, p. 99). Não é o que temos tido.

Nas suas memórias, Miguel Cadilhe diz que já andava a avisar os incautos desde, pelo menos, finais de 1986 e refere algumas intervenções públicas suas, desse ano e de 1987, em que aconselhava prudência aos apostadores de alto risco, tendo em conta a gritante disparidade então vivida entre a oferta, ainda escassa, e uma procura de acções cada dia mais frenética, compulsiva (cf. Factos e Enredos. Quatro anos no Ministério das Finanças, Asa, 1990, pp. 43ss). Em 13 de Outubro de 1987, na primeira grande entrevista que deu após a conquista da maioria absoluta, Cavaco Silva diria que muitos investidores andavam a comprar "gato por lebre", ante o olhar estarrecido dos seus entrevistadores, Amaral Pais, Cáceres Monteiro e Bettencourt Resendes, todos já falecidos. Seis dias depois, a 19 de Outubro, estourava em Nova Iorque a "segunda-feira negra de 1987", com o Dow Jones a cair 22,61% e contágios por todo o mundo.

Perante o descalabro patente, Abílio de Sousa proporia que a Bolsa encerrasse por 15 dias, até ver. Caldeira, mais arrojado e optimista, falou de um "susto pedagógico", coisa pouca e passageira, no que parecia ser acompanhado por vozes autorizadas, como as de Nobre da Costa ou de Sousa Franco (António Guterres, ministro-sombra dos socialistas, diria que o crash era "a conformação clara do fracasso da política económica do presidente Reagan").

Dias depois, o Banco Pinto e Sotto Mayor devolvia ao BCP um cheque do corretor, no valor de 690 mil contos, alegando falta de liquidez. A conta bancária de Caldeira tinha um descoberto de milhares de contos, dizendo o próprio que, em 2 de Novembro de 1987, esse valor se cifrava em um milhão e 200 mil contos, explicáveis, segundo ele, pelas idiossincrasias da Bolsa, questões de deve-e-haver, como expôs na audiência que pediu ao governador do Banco de Portugal, Tavares Moreira, o qual, prudentemente, se fez acompanhar do seu vice, Alípio Dias.

Em finais do ano, Jorge de Brito avisou-o de que se estava a expor em demasia, que seria alvo de invejas e difamações, mas nem isso o impediu de seguir em frente, sempre em frente, rumo ao abismo. Nessa altura, já estava em curso uma auditoria da Arthur Andersen ao seu famoso escritório, a que se sucederia uma outra, do Ministério das Finanças. Nem as diligências dos seus advogados - Nandim de Carvalho e Proença de Carvalho -, nem as audiências concedidas por Soares e Cadilhe (desistiu de pedir uma a Cavaco, que o tomara "de ponta"), nem as clemências pedidas pela Associação dos Clubes de Investidores levaram o ministro das Finanças a ceder na humilhante suspensão que lhe aplicou.

Pedro Caldeira aproveitou os seis meses de travessia do deserto para remodelar o back-office e pôr ordem no escritório. Entretanto, cimentava as suas relações com Manuel de la Concha, do Ibercorp, que lhe franqueou o acesso a Mario Conde, do Banesto, com quem logo estabeleceu um cordial pacto ibérico. É que, além das afinidades espanholas de Caldeira, e das lusitanas de Conde, pareciam gémeos separados à nascença, farinha do mesmo saco, os dois de cabelo em gel, ar impecável e fácies seguro, ainda que entre um e outro houvesse, naturalmente, a diferença de escala e fulgor que desde há séculos existe entre Portugal e Espanha: Caldeira andou fugido em tour familiar pela América, Conde acabou condenado a mais de duas décadas na pildra, das quais cumpriu 11 anos e sendo, ainda hoje, o quarto maior devedor ao fisco espanhol, com uma dívida de 14.961.664 euros - e 79 cêntimos.

Também por essa altura, Pedro Caldeira manteve amizade e negócios com outra personagem de lenda, Robert Maxwell, amigo de Mário Soares, cujo império da mídia, e não só, entraria em colapso em 1989, sendo o seu corpo depois encontrado, também em colapso, a flutuar ao largo das Canárias, de suposta queda acidental do seu iate, o Lady Ghislaine, assim baptizado em homenagem à filhota homónima, ora encarcerada em pena de 20 anos por tráfico sexual de menores.

Renascido das cinzas, com o escritório mudado para as Avenidas Novas, e depois para as Amoreiras. Pedro Caldeira e a sua sociedade de corretagem conheceram tempos "brilhantes" em finais dos Anos 80, princípios dos 90, com lucros de 30%. Contratou Francisco Capelo, director de Investimentos Estrangeiros do Banif, envolveu-se em coisas que não alcançamos, como a "lavagem do cupão", em parceria com a Fundação Berardo, as célebres OPV, a não menos célebre "Lei Sapateiro".

Indiferente aos que o avisavam contra o excesso de exuberância, manteve a simbiose entre o social e os negócios, a qual constituía, no fundo, a chave e a trouvaille do seu sucesso nos dois campos: no Verão de 1989, no aniversário de Cristina, uma feérica festa no La Meridiana, em Marbella, abrilhantada por Rui Guedes ao piano e pelas presenças de Jaime de Mora y Aragón, irmão de Fabíola da Bélgica, e de outra figura lendária da ¡Hola!, Gunilla von Bismarck (aqui, os meus sinceros agradecimentos a Pedro Caldeira pois, graças a ele, consegui realizar o velho sonho de escrever um texto que fala em simultâneo de Mário Crespo e de Gunilla, duas figuras que têm mais afinidades do que parece: ora ponham uma cabeleira loira em Mário Crespo e um lábio em biquinho na condessa alemã e depois tirem as devidas conclusões). No dia seguinte, o jornal ABC referiu-se à "festa dos milionários portugueses", para gáudio de Pedro & Cristina.

Não muito depois, reapareceu o velho fantasma dos cheques sem provisão, devolvidos pelo BCP, eterno problema que ciclicamente o assolava. Ante a dimensão do descoberto, Pedro terá entrado em pânico, pois outra explicação não se encontra para uma fuga tão desastrada, tão disparatada, quase tão frívola e tonta como os meios em que se movia - ou até, porventura, motivada por vergonha de encarar esses meios, em mescla com um complexo social que, muito provavelmente, sempre terá perseguido este filho de um capitão e neto de professores primários, nado em Sobral de Monte Agraço e sem estudos superiores.

Foi visto em público, pela última vez, a 22 de Julho de 1993, no concerto dos Genesis em Alvalade. Depois, esfumou-se: quando a família se preparava para rumar ao Algarve, onde finalmente iriam conhecer o Clube-T, Caldeira desviou o carro para Espanha e, de Madrid, apanhou o avião para a Florida (ao princípio, os jornais falaram da América Latina, via Paris ou Marselha, e até da Indonésia, país inimigo...). Seguiram-se meses alucinados, sem explicação, numa sucessão de lugares e hotéis: Orlando, Palm Beach, Washington, D.C. (onde pernoitaram a dois passos da sede do FBI), Virginia Beach, Norfolk (onde foram impedidos de dormir pelo barulho dos F-16 em treinos para a Guerra do Golfo), Albertsville, Jacksonville, Savannah (onde o FBI lhes apanhou o rasto, num Radisson), culminando em Atlanta, no Marriot Marquis, o das fitas de Mário Crespo. Numa entrevista telefónica para O Independente, disse que tinha dinheiro para sobreviver seis meses, não mais.

Enquanto isso, do lado de cá do Atlântico, o seu pai escrevia a Eanes, dizendo-lhe ser intenção do seu filho entregar-se na embaixada portuguesa em Washington. O antigo Presidente tratou o "meu coronel" com a máxima deferência, escreveu-lhe várias missivas de alento, ofereceu os préstimos e os serviços, em troca de correspondência que Pedro Caldeira fez questão de anexar à sua autobiografia. Na mesma obra, deu à estampa uma carta de Freitas do Amaral, agradecendo-lhe o dinheiro dado para cobrir as despesas das Presidenciais, e, muito ecumenicamente, os ofícios gratos e os convites recebidos do comandante Gomes Mota, mandatário financeiro da campanha de Soares.

O regresso a Lisboa seria acompanhado em directo e, graças ao canal público, o país pôde saber que o corretor almoçou um bife, a seu pedido (e por diligência do seu advogado, Rodolfo Lavrador), quando, aterrado na Portela, foi levado para os calabouços da Judiciária. Criou-se então, como sempre em Portugal, um enorme "imbróglio jurídico", nas palavras de Artur Albarran, em reportagem para a RTP, onde se falava de um desfalque na ordem de dois a seis milhões de contos, com cerca de 120 vítimas, entre empresas e particulares. Dos lesados, só um apresentou a queixa e a cara: José Almeida Araújo, que com ele jogava gamão e não só, pelos vistos (nas suas memórias, A Vida aos Pedaços, de 2012, o arquitecto não faz qualquer referência a Caldeira).

Cerca de dez anos depois, em 2000, Pedro Caldeira seria absolvido de todas as acusações contra si pendentes, sentença confirmada pela Relação de Lisboa, em 2005. Para trás ficavam os tempos passados numa prisão de alta-segurança dos Estados Unidos, onde, medindo o comprimento da cela, fez uma peregrinação até Fátima, mas sem sair da América. Para trás ficavam também os dias de cárcere em Portugal, por ele recordados de voz embargada e lágrima no olho, em evocação da solidariedade que teve dos seus "camaradas" na cela e no infortúnio.

Uma notícia do Jornal de Negócios, de 8/2/2013, dava conta de que a "mansão" (sic) de Pedro Caldeira no Parque da Gandarinha, tinha ido a hasta pública, mas não houve compradores. Apesar de penhorada, para pagamento das dívidas da sua corretora, Pedro Caldeira ainda lá morava e considerou normal a ausência de interessados. Pouco antes, em 2009, dissera numa entrevista que morria de saudades de voltar à Bolsa, uma "paixão à primeira vista", uma "adrenalina sem fim". Já antes, à saída da Relação, afirmara que "se Deus quiser, hei de voltar à Bolsa", coisa que Deus, até hoje, ainda não quis (até porque não é missão dos Evangelhos branquear a avidez dos humanos, diremos nós, sem ponta de maldade ou invídia). Enquanto aguarda que o divino lhe franqueie as portas da Euronext Lisboa, Pedro Caldeira diz que vive com dificuldades ("mas tenho uma mulher extraordinária, que trabalha"), fazendo peritagens para pessoas insatisfeitas com o modo como os bancos gerem as suas carteiras de títulos. Escreve amiúde na internet, com dicas para os ousados e conselhos aos investidores, que compilou num manual de autoajuda financeira intitulado Hora de Investir? (Prime Books, 2009). À pergunta do título, apetece responder com uma informação constante da própria obra: entre 2007 e 2008, perdeu-se em Bolsa o equivalente a metade do PIB mundial.

Hstoriador.
Escreve de acordo com a antiga ortografia.

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