Promessas da Europa e ilusões do país de Eça de Queiroz

Publicado a
Atualizado a

Desengane-se quem pensa que vem aí muito dinheiro e já! Apesar da boa notícia, alcançar um acordo no Conselho Europeu não foi um ato libertador. Depois das férias, o Parlamento Europeu ainda tem uma palavra a dizer e, a seguir, em outubro, vai ser preciso conhecer o Orçamento do Estado para 2021. Temos pela frente um Orçamento duríssimo, que começa a ser cozinhado neste verão, pelo novo ministro das Finanças, João Leão, e que vai contar com uma forte quebra de receita. Basta ver a situação das empresas para imaginar o trambolhão da receita em sede de IRC e de IVA.

Imaginando que o Orçamento vai ser viabilizado pela esquerda, haverá cedências e mais medidas sociais, com custos. E, mesmo que o governo conte com a chegada de dinheiros europeus, também tem de contar com o contributo financeiro nacional para que possam ver a luz do dia os projetos que recorrem a fundos comunitários.

É preciso lembrar ainda que o governo tem de apresentar o seu plano de intenções de como vai gastar o dinheiro e submeter à Comissão Europeia para aprovação. Há um caminho longo a percorrer e que requer transparência.

O trilho não acaba aqui. Em termos políticos, haverá um "teste de algodão" nas eleições autárquicas, em outubro de 2021. Vai ser uma tentação governativa prometer aos autarcas uma série de obras e de cerimónias de corta-fitas. Dito isto, espero que não se cometam os mesmos erros do passado, inaugurando piscinas municipais (algumas delas fechadas há anos), bibliotecas desproporcionadas para as populações locais e rotundas e mais rotundas para fazer brilharetes, colher votos e gastar mal o dinheiro dos contribuintes. O estado da nação exige transparência e escrutínio.

No teste do algodão há outra variável a considerar: o primeiro-ministro estará focado na importante missão da presidência portuguesa da União Europeia, no primeiro semestre de 2021, enquanto o aparelho do PS e os seus autarcas já estarão preocupados em ganhar eleições e mostrar obra. Para tal é necessário dinheiro, muito dinheiro.

Do ponto de vista orçamental, o exercício é tremendamente complexo. Como conjugar economia com política, como conciliar menos receita com mais despesa social e ainda alavancar o investimento público? Só encontro uma resposta: cortar na despesa corrente. Isso significa reformar a máquina do Estado. António Costa Silva, consultor do governo, põe o dedo na ferida quando diz que a administração pública está "obsoleta" e que tem de mudar, de uma vez por todas. Ou isso sucede ou, admite, "pode comprometer" a execução do plano e dos fundos de recuperação.

Não sou ingénua e os meus compatriotas também não. E não será, seguramente, em ano de autárquicas que o governo vai arriscar cortes na função pública, incluindo nas câmaras e juntas de freguesia. E pronto, andamos sempre nisto... lá terá de ficar para 2022 ou 2023 uma reforma do Estado! Só que, agora, misturar ingredientes de novos planos sem resolver velhos problemas pode não dar a receita do costume.
O estado da nação é febril. Podem querer sossegar-nos com a mensagem de está tudo bem e que vai ficar tudo bem, ou que até podemos gozar as férias porque depois vem aí o dinheiro europeu e tudo se resolve. Mas não, não vai ficar tudo bem e não é apenas por causa da pandemia.

O Conselho Europeu não é uma varinha mágica. Não nos deixemos anestesiar pelos dinheiros de Bruxelas nem pelos planos, porque já vimos que outros nunca saíram da gaveta. Em Moledo, na Costa da Caparica ou no Algarve, é importante carregar as baterias com energia e mergulhar em água fresca para manter os olhos bem abertos e a cabeça fria para tomar boas decisões. Citando Eça de Queiroz, "sobre a nudez forte da verdade" não nos queiram iludir com "o manto diáfano da Fantasia".

Jornalista

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt