Profissão de alto risco

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Assim como quem não quer a coisa, e numa idade que aconselha a não me arriscar como pianista, perguntei ao doutor google quais são as 10 profissões de maior risco. O marrão devolveu-me uma cabazada de propostas que, certamente como eu, andaram a copiar umas das outras. Bombeiros, polícias e militares, claro, são gente com natural exposição aos perigos, numa lista que inclui também mineiros, guardas prisionais, radiologistas, mergulhadores e, vá-se lá saber porquê, até jornalistas - talvez porque o número de mortos ou assassinados no último ano tenha atingido os 86, doze dos quais na Ucrânia.

Percorro outra vez a lista e, ó injustiça!, não encontro a política. Ora, a política é uma profissão de risco, que não conhece rotinas nem se deixa programar. Quem a ela se dedica, pelo menos nos escalões mais altos, deveria preparar-se para as mais duras provas, penosas contingências. Um dia está-se no topo da popularidade, para logo de seguida resvalar e cair, condenado ao ostracismo público, na valeta dos esquecidos. A política é também uma trituradora de vontades e reputações.

Basta que um político se destaque para que se apontem sobre ele todos os humores da bancada.
Numa sociedade onde a culpa é sempre de terceiros, o político é o bode expiatório ideal para apontarmos as reclamações, o destinatário imediato do nosso desconforto. E havendo governo, mesmo nos intervalos da longa novela que vai por aí, a culpa maior é sempre do governo que está ou dos que queriam estar e ainda não estão, seja quem for que encarne uma liderança pública. A bem dizer, tudo o que acontece na política não é mais que um reflexo do tipo de sociedade em que nos sentamos, escolhendo entre heróis e vilões. Acontece que uma das características do político é justamente que o herói de uns é sempre o vilão de outros. E difícil é escapar ao conflito entre amigos e inimigos, ou o nós e eles.

Por vezes, uma reviravolta inesperada torna tudo mais cruel e sangrento, quando aquela distinção se traslada para o interior das próprias organizações. Então, é Saturno que devora os seus filhos: que o digam António José Seguro no PS, ou Rui Rio no PSD. Não há misericórdia para quem perde o pé. Nem o mínimo sossego, porque tudo acontece a uma velocidade de vertigem, submetendo a realidade às exigências da "economia da atenção". A lógica da política foi engolida pela dos meios de comunicação e pelas redes sociais, tão dependentes da "novidade", mesmo que a culpa seja partilhada pelo mensageiro.

Há, porém, outra política que consegue sobreviver com certa placidez. É a política como administração da "coisa pública". E quem a ela se dedica, longe da algazarra, mas não imune às críticas ou divergências, prefere sempre um olhar mais cuidado e profissional, a visão técnica que protege o ator de quaisquer desqualificações grosseiras. Daí que, para além de medidas de segurança, os manuais para profissões de risco recomendem também cursos de qualificação e treino rigoroso para exercer a atividade.

Em geral, na política caseira não é o que acontece. Diante desta esquizofrenia - a política como espetáculo e a política como gestão - até parece que as lideranças são os fusíveis que é preciso ir queimando para manter o sistema a funcionar. Depois de nós, são eles vítimas que sacrificamos no altar da discórdia pública. O que já não se compreende tanto é como ainda pode haver pessoas dispostas a dedicar as suas vidas a tal sorte, ou quais são os incentivos para um papel tão fugaz, desalmado e tão sujeito ao risco. Mas isso é outra conversa, e enquanto ela se faz convém que alguém governe.


Jornalista

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