Professor Unrat: a atualidade de um clássico a descobrir
"Atormentava-o a ideia de que estavam ali reunidas várias centenas de pessoas que não «prestavam atenção», não «pensavam com clareza, e que, em vez disso, se embriagavam e se entregavam sem vergonha nem temor às mais ociosas «tolices». Bebeu um grande gole do seu copo. «Se eles soubessem quem eu sou», pensou então, à medida que o seu orgulho se ia despojando do que havia nele de obstinado, tornando-se mais moderado e brando, e algo esfumado - tocado por aquelas exalações humanas, por aquele vapor quente movido pelo sangue." Só neste pequeno excerto de Professor Unrat ou O Fim de Um Tirano, com tradução de Bruno C. Duarte, está condensada a queda de um homem: o professor do título, uma figura de prestígio, de modos afetados, que entra num salão onde canta uma certa "artista" popular e se debate interiormente com os hábitos da ralé à sua volta, enquanto ele próprio vai sucumbindo àquele "estado primitivo"... A belíssima edição E-Primatur que agora nos põe em contacto com este clássico da literatura alemã traz na capa a imagem justa dessa perda de autoridade, estampada no dedinho de uma mulher que afaga o queixo do professor em sinal de dominação. As silhuetas coloridas pertencem a Marlene Dietrich e Emil Jannings, os protagonistas de O Anjo Azul (1930), de Josef von Sternberg.
A referência direta ao filme é mais do que justificada. Afinal, esta adaptação cinematográfica teve um papel fundamental no reconhecimento de Professor Unrat como obra-prima da literatura alemã do século XX. Trata-se do primeiro romance de Heinrich Mann (1871-1950), publicado em 1905, que desagradou à crítica da época pela forma como chafurda com pinças na alma de um alemão burguês, desnudando-o de todas as camadas que o tornavam respeitável aos olhos da sociedade. Enfim: com a particularidade de esta personagem de nome Raat ser chamada pelos seus alunos de "Unrat", que significa "lixo" ou "sujidade". Um jogo de palavras a inspirar, ao mesmo tempo, gozo e respeito, já que a tirania do professor é indissociável da sua reação à alcunha afrontosa.
Em resumo, a história de Professor Unrat anda à volta deste homem influente, que acaba por cair de amores pela cantora de cabaret Rosa Fröhlich (no filme, Lola Lola), enquanto o seu estatuto social cai também na sarjeta, substituído por um vazio de valores, esses que antes envergava como uma gabardina engomada.
À conversa com o DN, o editor Hugo Xavier, responsável pela presente edição, fala dos anticorpos que esta obra presciente gerou aquando do seu lançamento: "É o livro de um autor novo que quer provocar uma certa moral estabelecida. E isso, em qualquer sociedade, em qualquer momento, sempre causou alguma suspeita por parte da crítica. Por outro lado, aquilo que está na base do livro, o seu tema principal, é uma coisa que trouxe uma grande incomodidade à sociedade alemã, por essencialmente mostrar como é que a burguesia tinha ascendido ao longo do século XIX, estando no seu auge em termos de poder económico, e a forma como vivia do discurso e da aparência, havendo depois uma vida interior que não correspondia...".
Heinrich Mann, irmão mais velho de Thomas Mann, procurou sempre passar para a escrita o seu pensamento social-democrata, avesso ao autoritarismo. Era alguém, nas palavras do editor, que tinha "esta preocupação - também patente nas outras obras dele - de expor a coexistência dessas duas faces [da burguesia]. E fê-lo numa época em que a sociedade alemã era particularmente rígida, minando a ideia moral que os alemães tinham de si próprios, e que queriam transmitir aos outros." Faz, assim, parte "de toda uma nova literatura centro europeia que estava a começar a refletir sobre a realidade social, e que não era vista com bons olhos pela crítica mais velha e instituída".
O tempo, e a referida adaptação ao cinema, recuperariam este romance que foi circulando com algum secretismo no meio intelectual, até se converter num grande clássico traduzido em várias línguas. Como é que se explica que ainda não tivesse sido contemplado por uma tradução portuguesa? Hugo Xavier dá-nos uma visão do mercado editorial: "Se formos aqui ao país vizinho, a Espanha, e entrarmos numa livraria com alguma qualidade, na secção de clássicos encontramos, de facto, todos os clássicos universais. Ao contrário de nós, que temos um mercado pequenino em cujos leitores não são assim tão regulares na aquisição de clássicos. Mas neste caso em particular, o Heinrich Mann até há bem pouco tempo estava no domínio privado, e tendo em conta que traduções do alemão são bastante mais caras, para além de não haver muitos tradutores dessa língua... tudo isso dificulta a publicação. Portanto, estas são lacunas que existem."
Resolvida a falha, é também importante perceber que a edição de Professor Unrat neste momento surge quase como um gesto de interpretação histórica, na medida em que a decadência do protagonista enfatuado dialoga perfeitamente com os ares da nossa contemporaneidade. "Aquilo que acontece no texto e no livro do Heinrich Mann, o tal desfasamento entre a imagem pública do professor Unrat - que passa como uma figura rigorosa que ensinou gerações e gerações - e a mudança da sua posição junto da comunidade, alguém que cai do pedestal do conhecimento quando acede à tal "vida interior", ou a uma perda de valores, é algo que está muito próximo dos tempos que vivemos. Isto é, um tempo em que as pessoas combatem por ideais e conceitos, por exemplo, contra o racismo, e depois algumas manifestam comportamentos racistas! E é um bocadinho assustador, porque na época do Heinrich Mann estava-se a assistir à ascensão dos movimentos nacionalistas e de extrema-direita, tal como hoje em dia. Há uma espécie de novo moralismo, mas isso não corresponde necessariamente ao comportamento real das pessoas", esclarece o editor.
Falar de Heinrich Mann implica, de alguma maneira, falar de Thomas Mann (1875-1955), o irmão mais famoso dos dois, autor de A Montanha Mágica e Morte em Veneza, vencedor do Nobel, que teve outras ganas na promoção da sua persona literária. Não é que Heinrich tivesse sido ofuscado por Thomas - o primeiro era, aliás, o mais respeitado nos círculos literários alemães -, mas não há dúvidas sobre quem chegou aos quatro cantos do mundo.
Como era a relação entre ambos? "Eles tiveram sempre uma relação de amizade, mas com várias zangas devido a posicionamentos políticos ao longo do tempo. Ao contrário do Heinrich, que era muito mais transversal em termos de postura política e filosófica, o jovem Thomas teve aproximações aos nacionalismos que levaram ao surgimento do nazismo - obviamente que depois não apoiou o regime nazi, até saiu da Alemanha, mas nos primeiros tempos escreveu textos que favoreciam aquelas ideias. Isto levou a uma certa separação entre os irmãos, que estiveram dois ou três anos sem se falar", conta Hugo Xavier. Salientando que a diferença da fama dos dois está sobretudo relacionada com o facto de Thomas ter trabalhado a sua imagem e projeção internacional como autor, coisa que o Heinrich nunca fez questão de desenvolver, para além de ter uma obra mais curta. "Porém, de acordo com os grandes especialistas da literatura alemã, o Heinrich é bastante melhor escritor do que o Thomas. Mas isso é algo que os leitores e a crítica no futuro terão de confirmar...".
Fica o desafio de tirar a teima com esta primeira edição portuguesa do Professor Unrat, que por sua vez no grande ecrã fez nascer uma estrela, mais especificamente a musa de Sternberg. Com efeito, O Anjo Azul (rodado simultaneamente em alemão e inglês) seria o passaporte de Dietrich para Hollywood, onde Falling in Love Again surgiria apenas como o primeiro de muitos temas musicais que se colaram à memória da sua pose lânguida. Em suma, é fácil perceber a psicose sexual que Lola Lola desperta no velho Unrat... Sendo este um dos primeiros filmes falados, a sua maior eloquência está contida nos detalhes visuais, tão significativos como a coxa nua de Dietrich. "Vista de frente, deves fazer lembrar Félicien Rops; de trás, Toulouse-Lautrec". E eis que as indicações pictóricas de Sternberg ganharam vida.
Professor Unrat ou O Fim de Um Tirano
Heinrich Mann
Editora: E-Primatur
244 páginas