Profana (e cega) trindade
O legislador não reparar no que os juízes andam a fazer é visto algumas vezes. Também se tem visto o legislador ignorar as repercussões que a alteração de um regime jurídico tem sobre outro. Mas quando são juízes a ignorar o que eles próprios consolidam na sua prática diária... Bem, um mal ainda se aguenta; dois, enfim, também; talvez três males sejam males a mais.I - Quando a lei processual penal (LPP) não é clara, os tribunais clarificam, evitando a insegurança jurídica. Foi o que sucedeu, por exemplo, quando a lei não esclarecia se era possível recorrer das questões prévias analisadas na decisão instrutória. Os tribunais disseram que sim. Essa ideia consolidou-se ao longo de 20 anos. O legislador, porém, alterou a lei, clarificando-a, mas em sentido oposto ao que a prática de 20 anos enraizou.II - Outro meio de clarificação da LPP é o recurso ao processo civil. As lacunas da LPP são, assim, resolvidas pela lei processual civil (LPC).Era o que se passava, e.g., com as regras sobre as notificações por via postal registada - que se presumem feitas ao fim de três dias úteis a contar da sua expedição. A LPP nada diz quanto à possibilidade de afastar essa presunção. Então, os tribunais socorreram-se da LPC e esclareceram que essa presunção poderia ser afastada pelo próprio notificado, e apenas no seu interesse - para demonstrar que essa notificação não ocorreu dentro desses três dias por razão que lhe é alheia.Com a profunda alteração da LPC verificada em 2013, o legislador afastou esta regra: de que a presunção de três dias podia ser afastada tão-só pelo notificado, e no seu exclusivo interesse.Todos se acostumaram a uma realidade e às suas consequências directas: a de que quem é notificado por via postal registada só se considerado notificado ao fim de três dias úteis depois do registo de expedição. Mas agora a LPC é omissa; e a LPP sempre foi.O paradigma do processo civil tem-se desenvolvido numa vertente cada vez mais digital. O Citius é hoje uma ferramenta da qual os aplicadores do processo civil se não podem desvincular. Esse paradigma, porém, não se verifica ao nível do processo penal. E o caos normativo agrava-se.Além de o legislador ter desconsiderado que a alteração da LPC se repercute na LPP, descurou também que o Citius é uma ferramenta estranha à tramitação do processo penal. Por último, temos muitas dúvidas quanto à razão de o legislador ter afastado a possibilidade de o notificado ilidir a presunção de ter sido notificado em três dias. Foi por fé no Citius ou descrença postal? Que atire a primeira pedra quem nunca falhou. Não sei se será o Citius a fazê-lo... III - Talvez fruto de um certo respeito corporativo, em termos globais, é possível afirmar uma aplicação homogénea do direito. Os operadores da Justiça confiam nessa homogeneidade aplicativa. Mas o terror instala-se se, inesperada e inexplicavelmente, a harmonia termina.Já basta a cegueira do legislador. Quando são os guias (tribunais) a precisar de orientação, os perigos são sérios.É da mais tremenda insegurança jurídica quando um tribunal afronta, sem mais, o que veio sendo clarificado ao longo de décadas. É assustador que, em arrepio à prática de décadas, um tribunal afaste, por sua iniciativa, uma presunção estabelecida a favor de alguém, para, e por isso, julgar praticado fora de prazo determinado acto dessa pessoa.Convém recordar todos: a Justiça é cega e é um princípio geral do direito. Não uma patologia ocular daqueles que o criam e aplicam. Muito menos apenas um programa televisivo.
*) Advogado da PLMJ na Área de Prática de Direito Contencioso Penal