"Procuro contrapor as memórias oficiais da PIDE às memórias afetivas e familiares dos presos"

<em>Luz Obscura</em> estreia-se amanhã no Indie Lisboa, no cinema S. Jorge, às 21:45. É uma viagem pelas memórias dos três filhos mais velhos do histórico dirigente do PCP Octávio Pato, que passaram pelas prisões políticas quando crianças. O que é a clausura? pergunta a realizadora Susana de Sousa Dias
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Nascida em Lisboa em 1962, é realizadora e produtora mas é da profissão de professora na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa que depende financeiramente, para poder manter a liberdade de fazer só os filmes que quer e como quer. Tem os cursos de cinema e de Pintura, , a Escola Superior de Cinema, depois fez Pintura nas Belas Artes, um mestrado em Estética e Filosofia da Arte na Faculdade de Letras de Lisboa e um doutoramento nas Belas Artes, em Audiovisuais. O novo documentário vem na sequência dos anteriores Natureza Morta (2005), sobre imagens da ditadura, 48 (2010), com relatos de presos político, e de Processo-Crime 141/53, Enfermeiras no Estado Novo (2000). Fica o esclarecimento: somos primas, os nossos bisavôs eram irmãos. Por isso nos tratamos por tu.

Fazer documentários não é única parte do trabalho, é a parte visível para o público?

É apenas uma parte e foi uma decisão. Podia ter ido trabalhar para a televisão ou ficar integralmente na área do cinema mas para isso teria de fazer umas certas concessões, e a minha decisão foi fazer apenas os filmes que quero, como quero. Paralelamente, dou aulas nas Belas Artes e gosto imenso.

Isso permite que o trabalho seja lento. Quanto tempo demoraste a construir este filme?

Muito tempo. E é engraçado teres começado por dizer que vem na sequência das enfermeiras - o Processo-Crime 141/53, Enfermeiras no Estado Novo. Foi a partir deste filme, de 2000, que descobri o Arquivo da PIDE, as fotografias desse arquivo, os processos-crime e toda a série de materiais que tenho trabalhado ao longo destes anos. Nessa altura, vi a fotografia de um menino preso com a sua mãe.

Está ao colo da mãe na fotografia da polícia?

É a única fotografia de cadastro que existe com um menino. Existem mais fotografias com crianças mas não de cadastro. Esta é a única, pelo menos que se conheça até agora, porque nos arquivos descobrimos sempre novas coisas. Desde essa altura pensei fazer o filme.

Essa fotografia é do Rui Pato, um dos filhos de Octávio Pato.

Sim, o mais novo nascido na clandestinidade, porque os mais novos nascem depois do 25 de Abril. Fui falar com ele em 2001, foi aí que começou o processo.

O Rui foi o primeiro filho com quem falaste?

Sim, era o que estava na fotografia. Fui ver "quem são estas pessoas?" Eram a companheira e o filho do Octávio Pato, e fui à procura dele. Através dele encontrei o Álvaro e a Isabel, filhos também do Octávio Pato, e que também foram presos. São os dois filhos da Antónia Joaquina Monteiro e o Rui é filho da Albina Fernandes.

Ambas estiveram presas. No filme vemos uma casa abandonada. É a casa dos avós?

É uma quinta, a casa dos avós já não existe.

Em Vila Franca de Xira?

Sim. O Rui e o Álvaro costumavam ir para a quinta do avô, onde ele trabalhava. Ele geria a quinta e eles passavam lá férias. É a quinta que permanece e ainda tem traços da casa, elementos que existiam. Mas aquilo que aparece no filme já não existe.

Ainda se vê a arca que o Rui diz que estava aos pés da cama da avó. Vê-se uma perna de uma boneca.

Isso já é uma acumulação temporal. O que aparece filmado é o interior de uma adega que foi servindo de armazém. Eles faziam a aguardente e aparecem lá as etiquetas. Há uma série de materiais que aparecem, mais pessoais, menos pessoais, livros. O livro de poemas do Carlos Pato, o tio, também estava lá no meio dos escombros. É uma espécie de metáfora daquela situação.

Continuas neste tema, que te fascina e te interessa. Porquê?

Porque há muitas histórias. Foi isso que me fascinou e impressionou quando entrei no arquivo da Pide, há muitos anos. Com as comemorações do 25 de Abril e com a questão da Fortaleza de Peniche, foram entrevistados muitos prisioneiros políticos, já há visibilidade, mas na altura não havia, não se falava. Para mim tornou-se imperativo trazer aquelas histórias para a luz. Estamos numa altura em que há uma série de pessoas que estão prestes a desaparecer. Perguntam-me: não entrevista os agentes da PIDE, só está a mostrar um lado da história? Não estou a mostrar só um lado da história, estou a mostrar aquele lado que não tem voz. Tudo o resto é visível. No arquivo da PIDE o que vemos é o que a PIDE deixou, é a voz da PIDE. O que não está lá são os prisioneiros, ou se estão são relatórios sempre mediados pelo olhar da PIDE, mesmo as cartas estão truncadas. A voz da PIDE existe. O meu propósito é mostrar o outro lado.

No 48 registas a memória das pessoas.

São as próprias pessoas que falam. A Luz Obscura é diferente porque os filhos, que foram presos, falam por si, mas há toda uma geração - os pais, os tios - que morreram, já não têm voz. O filme procura contrapor as memórias oficiais, expressas pelas fotografias do arquivo da Pide, às memórias íntimas e afetivas. E há as figuras, como a avó, que não existem em parte nenhuma, a não ser que nós vamos tirá-las a partir da memória das pessoas com quem contactaram. São pessoas que não existem na História, são mulheres - isto é outra questão - e portanto eclipsam-se muito facilmente. É uma espécie de arqueologia da memória. É preciso ir lá atrás para conseguir tocar em qualquer coisa que não é palpável e não tem expressão.

O Álvaro Pato diz que quando ele próprio começou a ter atividade clandestina, a avó começou por lhe dizer tem cuidado, vê lá no que te vais meter, e a seguir ensinou-o a esconder o Avante clandestino. E depois quando ele é preso, em, 1973, há outro aspeto curioso, a idade do torturador.

Exato, são jovens como ele. Tinham a mesma idade, vinte e poucos anos. Ele refere que ficou espantado porque tinha a ideia de que eram uns burgessos, uns homens brutos, e quando chegou lá confrontou-se com jovens que estavam a seguir a escola da Pide, estavam a seguir uma carreira, pessoas informadas que estudavam para ser agentes da Pide.

O que será feito deles?

É uma das questões que ficam.

És filha do cineasta António Macedo. Por que usas o nome da tua mãe?

Sempre vivi com a minha mãe e foi muito natural escolher o nome dela.

E depois seguiste a profissão do teu pai?

Diria que foi um acaso, mas não há acasos. Mas não foi por via dele. Quando lhe disse que ia para a Escola de Cinema ele tentou demover-me. Nem pensar, és louca, não vás, não faças. Mas eu queria ir e fui. Quando acabei a escola de cinema, foi um bocado traumatizante e decidi fazer as Belas Artes a seguir.

As aulas que dás e o doutoramento que fizeste são da área dos Audiovisuais.

É o cruzamento entre cinema e artes visuais, um cinema muito híbrido, não tem nada a ver com o cinema clássico, tradicional. É uma área muito especial e por isso é gosto tanto de estar nas Belas Artes. É graças a esta formação dupla que tive que faço os filmes que faço. Quando faço um filme, recorro a estas duas filiações: a que vem da arte e a que vem do campo do cinema.

Tens uma arte especial para gerir o silêncio. O silêncio e a lentidão são intencionais. Por que escolhes esta linguagem?

Porque para mim é muito importante. Volto atrás, ao filme das enfermeiras que tive que fazer com um prazo muito curto. Na altura, tinha aquela ambição de explicar tudo. Para mim era fundamental: tenho que explicar a história toda. E expliquei tudo.

O que explicaste?

Era a história de duas enfermeiras que foram presas, porque durante Estado novo não podiam casar. Entrevistei-as - a Hortênsia e a Isaura, entrevistei o António Borges Coelho, marido da Isaura, que também foi preso, entrevistei o Fernando Rosas, a Irene Pimentel. Fiz toda a contextualização, filmei os processos. É um filme com muitas palavras. E foi fundamental explicar o que era PIDE, como era a tortura, o que era o processo. Mas saí do filme com uma grande frustração, porque entretanto descobri aquelas extraordinárias imagens de arquivo na Torre do Tombo e no Arquivo do Exército, e era imperativo deixar as imagens viver e, sobretudo, não as deixar serem lidas por palavras. Queria abri-las dentro delas próprias e propor um outro tipo de leitura que não passasse pela palavra. A partir daí, mudei radicalmente a forma de trabalhar e fiz a Natureza Morta, que não tem uma palavra. E pude fazê-lo porque já tinha explicado uma série de coisas no filme anterior, pude abrir completamente a minha proposta seguinte. No 48, foi fundamental pensar na utilização da palavra. Há dois tipos de silêncios, que também se passam neste filme. Um deles são eles que o fazem. Por exemplo, quando pergunto à Isabel como era a avó, ela faz um silêncio. Este silêncio é o dela. Mas depois há outros silêncios que abro para dar hipótese ao espectador de pensar sobre o que está a ouvir, embrenhar-se e pensar.

Têm-te criticado pela lentidão?

Quando mostrei o 48 estava com muito receio das reações, e o filme foi extraordinariamente bem recebido.

E foi premiadíssimo.

Continua a circular a nível internacional, não para, foi à Documenta. E na Luz Obscura também pensei nisso. Mostrei-o pela primeira vez em Paris e foi muito bem recebido.

Amanhã no Indie Lisboa é a primeira vez que o mostras em Portugal.

Estou com uma certa curiosidade, mas já começou a sair alguma coisa na imprensa e tem sido positivo. Tentei tratar a ideia de clausura. Não só a história que é contada mas a própria experiência cinematográfica. O que pode ser estar em clausura? Foi importante trabalhar estas duas dimensões. O Rui e a Isabel estiveram presos quando eram pequeninos, mas eles estão presos nesta teia, como a Isabel diz: "A PiIDE estava sempre em nossa casa, mesmo quando não estava em casa estava sempre connosco". A PIDE fez sempre parte da vida deles todos. Há a sensação de opressão permanente, eles nunca são livres. Tentei trabalhar esta ideia também. E daí a lentidão, os silêncios, e também o escuro.

Tens sempre projetos entre mãos, coisas que estás a fazer. Não tens pressa de terminar um trabalho?

Mais uma vez é uma experiência que vem de trás, das enfermeiras, que fiz com outra produtora. Depois desse filme resolvi abrir a minha produtora, para ser eu a gerir o tempo. A Natureza Morta foi feita com produtores franceses.

Porque não tiveste apoio?

Nenhum. Para o 48 tive, sim, e havia prazos mas eram negociáveis. Quero ter tempo para fazer os filmes. Tenho sempre vários projetos mas quando mergulho num filme tenho de passar lá muito tempo. Tenho neste momento em montagem um filme que é um pouco diferente. A ideia inicial da Luz Obscura era ter vários núcleos familiares de vários presos políticos.

O que te levou a focar nesta família?

São histórias completamente diferentes. A outra que eu separei, e que se tornou um filme autónomo, é um outro núcleo familiar em que os filhos viveram na clandestinidade e foram depois para a União Soviética. Isto vai estabelecer outro tipo de conexões e trazer novos temas, novas questões. Nesse caso, consegui entrevistar os pais.

Na família de Octávio Pato, os pais já morreram.

E descobri um álbum familiar da clandestinidade, uma coisa extraordinária. Havia sempre um interdito, as pessoas mostravam-me fotografias e diziam: "Eu em criança apareço mas o meu pai está escondido, atrás da porta ou atrás de uma planta". Não podiam aparecer. Se a Pide apanhasse as fotografias, eles eram apanhados também. De repente vejo aquele álbum familiar, com todos fotografados. Parece a família perfeita: a mãe no jardim, de vestido, com as rosas. O pai. Os filhos. E quando se conhece a história da família vê-se que o álbum é todo uma construção. Há um discurso fotográfico que não corresponde minimamente à realidade. O próprio álbum tem uns códigos do que era a representação familiar nos anos 60/70, e consegue-se perceber o que se passa. O filme parte de um álbum familiar, já não das fotografias oficiais. É completamente diferente. Também trabalha a questão da fotografia, do que se vê para lá da superfície de fotografia.

E tens mais projetos?

O outro que já comecei a investigar é sobre uma fazenda perto de Luanda. Prende-se com a história do colonialismo. É, mais uma vez, tentar contar a história de um regime, só que indo às raízes, a esta construção do império, e vindo ao presente também, com esta configuração geopolítica, a nova reconfiguração dos centros do mundo, a partir da fazenda. É um grande arco a partir de um local. A ideia partiu também de imagens de arquivo de um filme que descobri, eu e o Ansgar [Schäfer] , que é produtor e marido.

Que está também envolvido na investigação sobre as vítimas portuguesas de trabalhos forçados no III Reich. Por coincidência, falei com ele há poucos dias. Ele é produtor, investigador, professor.

Quando procurei fundos para a Natureza Morta, em Portugal, precisava de um produtor. Olhei para ele e perguntei-lhe se queria vir comigo e ser meu produtor. E fez tão bem o trabalho - foi uma grande surpresa porque eu não lhe conhecia esta faceta, de apresentação do projeto, de convencimento de parceiros - que pensei "há aqui um produtor em potência". A partir daí é com ele que tenho feito os filmes. Tem uma grande paciência para me aturar. Também está a produzir outros filmes, projetos que escolhemos e de que gostamos. Temos uma produtora de cinema, a Kintop, mas somos livres no sentido em que não vivemos da produtora, não precisamos de fazer dinheiro com ela. Fundámo-la para fazer os filmes que queremos e isso dá-nos uma grande liberdade. Conseguimos pôr-nos à margem da pressão neoliberal do lucro. É horrível, neste momento. Nós até abrimos a produtora como associação, porque era o nosso modo de trabalhar, mas as leis mudaram e para concorrermos ao Instituto de Cinema tivemos que nos transformar em empresa.

Para a Luz Obscura, tiveram o apoio da RTP e do ICA.

Tivemos o apoio do ICA e, automaticamente, da RTP, porque ainda foi numa época em que o ICA dava apoio e automaticamente a RTP era obrigada a dar. Agora já não é assim. Agora apresentamos o projeto à RTP e se se interessar dá apoio, ou escreve uma carta a dizer que apoia se conseguirmos o apoio do Instituto de Cinema. Quando mostro o 48 lá fora, dizem que temos um canal televisivo muito à frente, porque apoiava um filme assim... Atualmente temos uma situação - se bem que está tudo em risco - que nos permite trabalhar com uma grande liberdade, com o apoio do ICA. Ninguém vai dizer como temos de fazer. Quando fiz a Natureza Morta, com apoio de França e num enquadramento de cinema de autor, experimental, tive que discutir muito com eles, era tudo discutido.

Os festivais continuam a ter salas cheias, e sobretudo de jovens. Como explicas isto?

Há um grande público, interessado. Temos poucos cinemas fora do circuito. Temos alguns importantes que fazem ciclos especiais - o Nimas, o Ideal. Há uns oásis, mas o mainstream americano esmaga tudo e formata. É um grande problema. O IndieLisboa, DocLisboa, e outros, porque há muitos festivais, como os do cinema francês e do cinema italiano, vão captar públicos que estão sedentos de ver para além disso.,

E há jovens realizadores, bons, premiados. Surpreende-te?

Não me surpreende. Fico muito contente. Há um grande interesse pelo cinema português e é frequente as pessoas perguntarem-me como é que neste país se produzem estas obras tão especiais. É um mistério. Temos esta tradição artesanal de cinema, é uma forma de trabalhar, e sobretudo tem ainda a ver com o facto de os apoios não estarem sujeitos a uma regra. Há uma grande liberdade de trabalho e isso tem de ser mantido.

Que expectativas tens em relação ao teu filme?

Estou na expectativa de ver como o público reage, é sempre um momento importante quando se lança um filme. E sobretudo por dar a conhecer esta história.

E do Indie, da programação, o que esperas?

A programação é muito boa, há imensos filmes que me interessam. Há um grande cunho das questões políticas que são prementes na altura que vivemos, tempos muito complicados. Temos de estar atentos e a trabalhar no terreno. Tenho muita vontade de vir para a atualidade. Os filmes que eu faço partem de histórias do passado mas a ideia não é ser sobre o passado, é pensar o presente através delas, isso para mim é fundamental.

Comovi-me a ver o filme, embora não seja feito para a lágrima.

Não, pelo contrário. Essa foi uma das grandes dificuldades do filme e uma das minhas surpresas. Quando falei com eles, contavam as suas experiências como se tivessem sido no dia anterior. Estava tudo à flor da pele e com uma extrema comoção. O meu cuidado no filme também foi tentar trabalhar com delicadeza toda essa comoção. Porque puxar à lágrima é o mais fácil. Mas é todo o resto que interessa.

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