Primeiro presidente negro sai do poder num pico da tensão racial

Charlotte em estado de emergência após segunda noite de violência. Trump defende aplicar a todo o país o programa Parar e Revistar.
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Três afro-americanos mortos pela polícia numa semana, uma cidade - Charlotte, na Carolina do Norte - em estado de emergência depois da segunda noite consecutiva de violência, protestos quase diários contra a violência policial e agentes alvo de atos de vingança. A quatro meses de deixar a Casa Branca, Barack Obama, o primeiro presidente negro dos Estados Unidos, depara-se com um país onde as tensões raciais se têm vindo a acentuar, trazendo às memórias a luta dos anos 50 e 60 pelos direitos cívicos dos negros.

Punhos levantados e mãos erguidas - no gesto de Hands Up Don"t Shoot (mão no ar, não disparem), que se tornou comum nos protestos contra a violência policial -, as imagens das últimas duas noites em Charlotte são reminiscentes do Black Power da segunda metade do século XX. Desta vez o pretexto é a morte de Keith Lamont Scott, abatido na terça-feira quando esperava pelo filho no carro. Os relatos sobre o que aconteceu divergem. A polícia garante que o agente Brentley Vinson, afro-americano tal como Scott, disparou depois de pedir, repetidamente, ao suspeito para pousar a arma que teria na mão. Testemunhas e a família da vítima garante que este estava a ler um livro e que era isso que tinha na mão. As autoridades garantem não ter encontrado nenhum livro no local do crime.

Ontem, depois de confrontos entre manifestantes e de a polícia ter tido de intervir, com nove pessoas a ficarem feridas (chegou a falar-se num morto, informação mais tarde retificada) e 44 detidas, os residentes de Charlotte acordaram com a guarda nacional nas ruas e em estado de emergência. A maior cidade da Carolina do Norte é um grande centro financeiro do Sul dos EUA, com uma população de 827 mil pessoas (35% de negros, comparados com os 13% a nível nacional).

Se no caso de Scott, o agente que o abateu também era afro-americano, a maioria destas mortes envolvem agentes brancos. É o caso de Terence Crutcher, 40 anos, morto a tiro na terça-feira em Tusla, Oklahoma, pela agente Betty Shelby, quando o seu carro avariou na berma da estrada. Ou o de Tyre King, de 13 anos, morto na semana passada por um polícia branco que respondeu a um assalto em Columbus no Ohio.

Segundo dados do Washington Post, a polícia americana já matou este ano 706 civis, estando, segundo o jornal, a caminho de igualar o número do ano passado - quase mil.

Neste clima pesado, com a retórica entre os líderes afro-americanos a subir de tom, e os protestos a chegarem a vários sectores: da música com Beyoncé a homenagear as Panteras Negras no último Super Bowl (a final do campeonato de futebol americano) ao desporto, com vários jogadores da NFL ajoelharem-se durante o hino nacional em protesto contra a violência contra os negros. E o milionário Donald Sterling, dono da equipa de basquete Los Angeles Clippers, foi suspenso para sempre depois de ter feito comentários racistas.

Os últimos incidentes geraram um clima de revolta na comunidade negra que muitas vezes se vira contra a polícia. Em julho, um veterano do Afeganistão abateu cinco agentes em Dallas, no Texas, durante um protesto do grupo Black Lives Matter.

Na origem de Trump

Segundo analistas ouvidos pela revista US News & World Report, "falar de uma sociedade pós-racial depois das duas eleições de Obama foi provavelmente prematuro". Para Christopher S. Parker, da Universidade de Washington, a chegada de Obama ao poder em 2008 "longe de deixar os americanos mais confortáveis com um líder oriundo de uma minoria, veio exacerbar esses medos". Um receio que, para o académico, explica parte do sucesso do republicano Donald Trump na corrida às presidenciais de 8 de novembro: "Obama assustou tanto os brancos que tornou a candidatura de Trump possível".

Consciente de que para vencer a rival Hillary Clinton precisa do voto negro (tradicionalmente democrata), Trump tem garantido ser o melhor para defender os interesses dos afro-americanos, impedindo os imigrantes de virem "roubar os seus empregos". Uma aproximação à comunidade afro-americana que contrasta por exemplo com o apoio que recebeu do Grande Feiticeiro, como é chamado o líder do grupo supremacista branco Ku Klux Klan.

Depois dos incidentes em Charlotte, Trump veio criticar Obama, denunciando a "falta de espírito entre brancos e negros" e apelando a mais "lei e ordem", uma das bandeiras da sua campanha. O milionário defendeu que o Stop and Frisk (Parar e Revistar), uma técnica usada pelo mayor Rudy Giuliani para controlar a criminalidade em Nova Iorque nos anos 90, devia ser alargado a todo o país. Uma ideia que o atual presidente da Câmara de Nova Iorque, o democrata Bill de Blasio, que acabou com o Stop and Frisk quando chegou à autarquia em 2014, considerou perigosa. "Donald Trump fala do Stop and Frisk como se conhecesse os factos. Mas ele não tem qualquer experiência com policiamento ou com segurança pública", garantiu o mayor.

Com as eleições a aproximar-se e o primeiro debate entre candidatos marcado para dia 26, Hillary Clinton admitiu que a atual tensão racial é "insustentável" e deve tornar-se "intolerável". Procurando acalmar tensões, a candidata democrata saudou o papel da polícia dos recentes ataques em Nova Iorque, New Jersey e no Minnesota.

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