Preto no branco: Conflito Israel/Hamas e potenciais crimes de guerra
Para que dúvidas não subsistam começo por condenar veementemente o ataque de terrorismo perpetrado pelo Hamas a 7 de Outubro deste ano, do qual resultaram cerca de 1200 mortes e 240 reféns. Dito isto lanço, simultaneamente, severas críticas à acção militar israelita em Gaza, acção essa que ultrapassou há muito, quer sob uma perspectiva jurídica quer moral, os limites da legítima defesa estipulada no artigo 51 da Carta das Nações Unidas e que segundo a informação disponível causou, em 2 meses, mais de 16000 mortes, entre as quais se contam mais de 7000 crianças e cerca de 5000 mulheres.
O brutal ataque do Hamas espoletou forte solidariedade para com Israel, para com um povo que já tanto sofreu. Esse sentimento não pode traduzir-se, porém, como apontou Karim A.A. Khan, Procurador do Tribunal Penal Internacional (TPI), num cheque em branco.
O TPI já se encontra a investigar o conflito em curso e dirá mais tarde de sua justiça. Por ora segue um elenco objectivo, fruto de avaliação imparcial, de alguns dos graves crimes que, considerando a informação disponível, estarão a ser cometidos por ambas as partes.
No respeitante ao Hamas, os seus actos abrangem flagrantes violações do Direito Internacional Humanitário, incluindo os seguintes crimes de guerra:
· O ataque indiscriminado, que teve lugar no dia 7 de Outubro, contra a população civil e não contra alvos militares (artigo 8(2)(b)(i) do Estatuto de Roma);
· Violações sexuais (artigo 8(2)(b)(xxii) do Estatuto de Roma);
· O uso de escudos humanos, isto é, o aproveitamento da presença de civis ou de outras pessoas protegidas para evitar que determinados pontos, zonas ou forças militares sejam alvo de operações militares (artigo 8(2) (b)(xxii) do Estatuto de Roma);
· Homicídios dolosos (artigo 8(2)(a)(i) do Estatuto de Roma);
· Tortura (artigo 8(2)(a)(ii) do Estatuto de Roma); e
· A tomada de reféns, alguns dos quais já foram usados como moeda de troca (artigo 8(2)(a)(viii) do Estatuto de Roma).
No atinente a Israel, o «ataque armado» do Hamas conferiu-lhe o «direito inerente de legítima defesa», contudo o que começou por ser legítima defesa adquiriu com relativa celeridade contornos de punição colectiva da população civil de Gaza - em contravenção do artigo 33 da Quarta Convenção de Genebra e do artigo 4 do Protocolo II. Em bom rigor, a acção militar israelita poderá abarcar os seguintes crimes de guerra:
· O encerramento das rotas de acesso a Gaza (impedindo o fornecimento de água, alimentos, medicamentos, combustível, etc.) com a intenção de utilizar a privação de bens indispensáveis à sobrevivência da população civil como método de guerra (artigo 8(2)(b)(xxv) do Estatuto de Roma). Em regra, o busílis reside em provar intenção, mas neste caso foram os próprios representantes do Governo, entre os quais o Ministro da Energia, que declararam à imprensa que o cerco e as consequentes privações impostas à população civil cumpriam efectivamente um objectivo bélico. Em termos práticos o cerco de Gaza que subsiste há 2 meses - com uma pausa de 7 dias pelo meio - provocou uma intensa crise humanitária. Tal facto não é de estranhar tendo em conta que a população civil de Gaza carecia antes do início da guerra de 500 camiões/dia de apoio humanitário, tendo entrado em quase 2 meses de guerra o equivalente a escassos dias de necessidades em tempos de paz, sem feridos, sem populações deslocadas, sem rotura do sistema de saúde e com saneamento básico (OCHA - United Nations Office for the Coordination of Humanitarian Affairs);
· A retaliação intencionalmente dirigida contra alvos não delimitados, incluindo a população civil ou bens civis, viola à partida o Direito Internacional Humanitário (artigo 8(2) (b) (iv) do Estatuto de Roma) por não observar o princípio da distinção (do qual decorre que as partes de um conflito armado devem distinguir entre alvos civis e militares) sendo de sublinhar que a omissão do Hamas em observar este princípio (em relação à população civil de Gaza) não desobriga Israel de o fazer. Não sendo acatado o princípio da distinção, há que ter em conta o princípio da proporcionalidade e a questão da intenção. À luz do princípio da proporcionalidade os danos civis colaterais são desproporcionais e, portanto, proibidos se forem excessivos em relação à vantagem militar concreta e directa daí resultante. A apreciação é, pois, casuística. Quanto à questão da intenção, um porta-voz do exército israelita esclareceu-a ao afirmar peremptoriamente o «foco está em causar danos e não na precisão»;
· Embora o Governo israelita possa alegar que os alertas de evacuação que têm sido feitos em Gaza visam minimizar as vítimas e os danos civis, poderá ter-se verificado uma outra violação do Direito Internacional Humanitário sob a forma de deslocação forçada da população - com consequente agravamento das condições humanitárias em virtude das insuficientes ou mesmo inexistentes opções de sobrevivência ou de fuga (artigo 8(2)(b)(viii) do Estatuto de Roma). Actualmente existe um mapa que divide Gaza em centenas de pequenas zonas numeradas para alertar a população civil (85% da qual se encontra deslocada) quanto à iminência de ataques. Porém, a disseminação dessa informação através de redes sociais ou de QR Codes a uma população civil que se encontra privada de meios de comunicação não faz grande sentido. Mais, as zonas de «segurança» variam com constância e são, segundo as agências de notícias, relativamente ilusórias;
· A acção militar israelita não exibe, à data, os elementos do crime de genocídio, o qual implica a prática de actos intencionais destinados à destruição, total ou parcial, de um grupo nacional, étnico, rácico ou religioso (artigo 6 do Estatuto de Roma). O desígnio parece ser, sim, o de tornar Gaza inabitável e de levar ao êxodo total da sua população civil que não tenha, entretanto, perecido (aplicando-se então o artigo 7 do Estatuto de Roma que versa sobre crimes contra a humanidade).
Conclusões
A classificação jurídica acima poderá parecer fria, porque analítica, sendo, não obstante útil no âmbito de um conflito que tem sido minado por narrativas acesas e polarizadas. Permite pelo menos (i) lembrar que o Direito Internacional Humanitário regula os meios e métodos de guerra com vista a diminuir as barbáries que dela decorrem, (ii) entender os moldes concretos em que subsiste incumprimento do Direito Internacional Humanitário no actual conflito Israel/Hamas, (iii) reiterar que do Hamas, grupo terrorista que é, nada se pode esperar senão violência e intimidação em relação à população civil de Gaza, à de Israel e do mundo em geral e (iv) frisar que de Estados democratas (unidos que se encontram pelo respeito por certos e valores e princípios que sustentam essa forma de governo), como Israel, se espera naturalmente a observância de um núcleo básico de imperativos ditados pela compaixão e pela humanidade, sobretudo em tempos de guerra, nomeadamente em relação a mulheres e crianças não combatentes.
Nota: A autora não escreve de acordo com o novo acordo ortográfico.
Patricia Akester é fundadora de GPI/IPO, Gabinete de Jurisconsultoria e Associate de CIPIL, University of Cambridge