Presidentes e tchutchucas

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Jair Bolsonaro percorria o caminho do Alvorada para a base aérea em Brasília quando pediu para parar e cumprimentar apoiantes.

Abraço para cá, selfie para lá, foi abordado por um YouTuber, de telemóvel na mão, que o provocou. O presidente brasileiro voltou para o carro. O YouTuber, assumidamente da "direita versão Sergio Moro", chamou-o então de cobarde e vagabundo. Bolsonaro respirou fundo, mas ignorou até o influenciador gritar a palavra mágica: "Tchutchuca! Você é uma tchutchuca do centrão".

Aí o chefe de Estado não resistiu, saiu da viatura e tentou arrancar o telemóvel das mãos do rapaz. O presidente sabia que não escaparia de manchetes do tipo "Bolsonaro envolve-se em briga com YouTuber", arrasadoras em qualquer circunstância, mais ainda em campanha. No entanto, deve ter sentido que valeu a pena porque ser chamado de tchutchuca não dá.

O termo tchutchuca entrou na política em 2019, durante audiência parlamentar do ministro da economia, Paulo Guedes, sobre previdência social. O deputado Zeca Dirceu, do Partido dos Trabalhadores (PT), acusou Guedes de ser "um tigrão com os reformados, os idosos, os portadores de necessidades, os pequenos agricultores, os professores" mas "uma tchutchuca com a turma mais privilegiada do país". O ministro, como Bolsonaro três anos depois, ficou fora de si: "Tchutchuca é a sua mãe, a sua avó!". A audiência terminou aí, com empurrões, gritaria e a entrada em campo dos seguranças.

"Tchutchuca" é o nome de um funk carioca lançado no início do século pela banda Bonde do Tigrão, que aborda a relação de um Tigrão - homem viril e dominador - com uma Tchutchuca - mulher submissa, mulher objeto - de forma, digamos, direta: "Vem, vem, tchutchuca, vem aqui pro seu tigrão, vou-te jogar na cama e te dar muita pressão". E a virilidade ou falta dela é um ponto sensível de Bolsonaro, homem em permanente estado de puberdade, e do seu governo.

Cobarde? Vagabundo? Ok. Genocida? Projeto de ditador? Cópia reles de Trump? Ele aguenta. Tchutchuca? Nem pensar.

O ponto, no entanto, é que o presidente Bolsonaro se comporta, de facto, como a mulher submissa do dominador centrão, o conjunto de cerca de 200 deputados que apoia qualquer governo em exercício, de esquerda, centro ou direita, em troca de cargos e nacos do orçamento.

Em sua defesa, assinale-se que Fernando Henrique Cardoso (FHC) passa metade dos seus livros de memórias a queixar-se dos sapos do centrão do seu tempo que foi obrigado a engolir para manter a governabilidade. E o PT foi além: institucionalizou o domínio do legislativo e a submissão do Executivo em forma de mensalão, esquema em que o governo pagava ao centrão para o deixar governar. Michel Temer, por sua vez, era o próprio centrão.

São essas as regras do (viciado) jogo de poder no Brasil: como o partido do presidente, seja FHC, Lula ou Bolsonaro, só controla uns 20% do Congresso, o governo fica uma tchutchuca nas mãos dos deputados clientelistas tigrões, que trocam apoio pelas tais honras e dinheiro.

Dilma Rousseff, a páginas tantas, resistiu a essa negociata e acabou engolida pelo centrão no processo de impeachment. Ela pode ser acusada de não ter sabido governar o Brasil mas, ao contrário dos seus antecessores e sucessores cheios de testosterona, jamais foi tchutchuca.

Jornalista, correspondente em São Paulo

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