"Presidente Xi pôs muita pressão em todas as áreas da sociedade chinesa, incluindo no sistema de propaganda"

Professor na Universidade Chinesa de Hong Kong, Kecheng Fang esteve em Portugal para debater media e propaganda no âmbito do curso de inverno dedicado ao estudo da comunicação organizado pela Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica de Lisboa. E mostrou uma abordagem corajosa sobre como Pequim lida com a informação.
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Qual é o poder da propaganda na China? É organizado de forma quase científica ou mostra contradições e reflete até alguma luta entre diferentes fações do PC Chinês?
O sistema de propaganda na China é enorme, inclui não só os meios de comunicação, mas também o sistema de educação, a internet, a cultura, o entretenimento, tudo... Podemos considerar que tudo faz parte da propaganda. Como é um sistema gigantesco tem muita gente e muitos departamentos envolvidos. Por um lado, tem muitos recursos, chega a muita, muita coisa, mas por outro lado, tem muitas contradições. Às vezes, departamentos diferentes têm opiniões e objetivos diferentes, como aconteceu com a história da covid original, de terem sido os EUA a criarem a covid. O Ministério dos Negócios Estrangeiros queria promover essa história, mas a comunicação social oficial não a queria promover, pois tinham entendimentos diferentes. Também têm os seus limites, não quero que as pessoas imaginem que a propaganda é todo-poderosa, há coisas que eles não conseguem fazer.

Em termos da comunicação social tradicional, qual é hoje o nível de liberdade de imprensa na China? O jornalismo de investigação é possível?
Sim, ainda é possível. Claro que se olharmos para os rankings vemos que a China está numa posição realmente má, mas ainda há algum espaço para o jornalismo de investigação. Na China há basicamente dois tipos de órgãos de comunicação, há os órgãos oficiais que servem de propaganda e, por outro lado, há os que embora sejam propriedade do Estado são comerciais e não se pode obrigar as pessoas a lê-los, é preciso conquistar as audiências. Para conseguir isso, é preciso publicar conteúdos mais diversificados que incluem, obviamente, entretenimento, bisbilhotices, desporto, mas também, às vezes, artigos de investigação. Na verdade, estes servem, por vezes, para legitimar o governo. Porque a China é muito, muito grande, com muitas províncias, a corrupção a nível local pode ser grave para o governo central. Assim, se se fizer investigação para um artigo sobre a corrupção, digamos, num governo regional, isso pode ser tolerado pelo governo central em Pequim porque ajuda-o a monitorizar as autoridades governamentais que estão espalhadas por toda a China. Portanto, por vezes, o jornalismo de investigação é não só tolerado como usado para servir o governo.

Alguns órgãos tradicionais como o Diário do Povo, o Global Times, mesmo a Xinhua, usam uma abordagem diferente quando publicam em língua chinesa e em inglês?
Sim, é verdade. Desde o início do Partido Comunista que as autoridades sabem que têm de dizer coisas diferentes às audiências internas e externas. Na verdade, o presidente Mao Tsé-tung era um mestre no uso da propaganda a nível interno e externo. Durante os primeiros anos da revolução, ele conversou muito com um jornalista chamado Edgar Snow e sabia o que o público ocidental queria ouvir sobre a China. Assim, a diferenciação entre as duas audiências sempre foi crucial para a propaganda chinesa. Eu diria que isso acontecia até há pouco tempo, mas porque o presidente Xi pôs realmente muita pressão em todas as áreas da sociedade, incluindo no sistema de propaganda, este encontra-se também numa situação em que goza de cada vez menos autonomia em termos de poder escolher o que dizer. Ou seja, no passado eles podiam ter alguma liberdade para explorar a melhor forma de comunicar com estrangeiros, incluindo algumas más notícias sobre a China, incluindo alguma parte do lado negro, o que fazia com que os estrangeiros achassem a comunicação mais credível. No passado pode ter havido algum espaço para isso, mas devido à governação tão apertada de Xi Jinping, os burocratas não se atrevem a ofendê-lo. Hoje em dia, se quiserem falar para uma audiência estrangeira de forma a transmitir uma imagem mais eficaz da China, os burocratas preocupam-se com as consequências disso. Portanto, penso que atualmente essa diferenciação entre a comunicação para o público interno e externo está a diminuir.

O que pensa sobre este fenómeno do Sixth Tone que diz ser tão popular entre os observadores da China e os académicos na América? Representa a produção de notícias de alta qualidade sobre a China?
Na verdade, eles contratam estrangeiros, os editores são ocidentais, mas muitos dos jornalistas são chineses, pois em termos de língua deve-se contratar falantes nativos. Claro que algumas das suas histórias são sensíveis. Há histórias publicadas e depois apagadas, portanto há restrições, há tópicos que não podem ser abordados, como Taiwan, o Tibete, etc. São assuntos em que não se pode tocar, mas mesmo assim é mais livre...

Mas é provavelmente a melhor fonte de informação sobre a China, produzida pela China oficial?
Sim, é produzida por chineses e apoiada por financiamento oficial. Eles querem realmente contar a história do povo chinês, mas em vez de serem porta-vozes do governo ou em vez de se focarem em criticar o governo, eles querem mesmo contar a história do povo chinês, histórias com um foco mais humano. Foi por isso que ganharam esta popularidade toda e também credibilidade.

A sua Universidade é em Hong Kong. Como é que a liberdade de imprensa está a resistir em Hong Kong? A lógica de "Um país, dois sistemas " ainda está a funcionar?
Ainda está... Hong Kong continua diferente da China continental, apesar de a liberdade e o espaço da imprensa ter diminuído certamente nos últimos dois, três anos, em grande parte devido à lei da segurança nacional e o encerramento do Apple Daily e do Stand News, os maiores órgãos pró-democráticos. A diferença está em que os grupos de comunicação que operam em Hong Kong ainda são de proprietários privados, não são estatais. Todos os grupos de comunicação na China continental são estatais e é essa a diferença para Hong Kong, além de que em Hong Kong não há censura na internet, o que já perfaz duas diferenças.

Ainda posso confiar inteiramente no South China Morning Post?
[Risos] Pode confiar, mas pode ler sob a perspetiva de que há certos artigos que não vão analisar o quadro total. Tem de ter presente que embora possa confiar na informação que eles publicam, podem estar a esconder alguma, a minimizar a importância de certos tópicos. Por exemplo, a chamada "Revolução do Papel Branco", que é um movimento disseminado na China de protesto contra a política covid, penso que não foi totalmente coberta no South China Morning Post, mas em relação às histórias que eles publicam eu confio na qualidade da informação. Sei é que eles vão evitar certos temas.

O senhor é um cidadão chinês que vive em Hong Kong. Isso fá-lo sentir que corre risco de represália ao falar tão abertamente sobre o lado sombrio da China?
[Risos] Em primeiro lugar, eu sou um académico, portanto faço investigação académica. O meu objetivo não é protestar ou ser um ativista. No entanto, eu exprimi-me muito abertamente aqui em Lisboa, porque vim a uma reunião académica e foi uma partilha nesse âmbito. Se eu me focar no lado académico, continuo a ter alguma liberdade. Por outro lado, sinto algum receio das consequências porque nunca se se sabe... este sistema é tão...

É possível para alguém, na China continental, fazer o mesmo tipo de pesquisa que o senhor faz?
Em primeiro lugar, o governo não financia este tipo de investigação. Portanto, não há dinheiro, mas se a quisermos fazer, tudo bem, e se publicarmos artigos generalistas em inglês em revistas académicas que não são lidas por muitas pessoas - os artigos académicos são lidos talvez por dez pessoas [risos] - e não há o perigo de uma influência disseminada, penso que se pode fazer. O problema atualmente é o seguinte: se alguém ler o artigo, não ficar contente com ele e decidir publicá-lo nas redes sociais, então o autor tem problemas porque esse tipo de artigos tende a tornar-se viral nas redes sociais e o governo começa a prestar-lhe atenção e a tomar medidas para impedir que esse género de coisas aconteça.

Quando fala com estrangeiros, nota que as pessoas estão mais preocupadas com a falta de liberdade na China ou admiram mais o país devido ao sucesso económico? Pensa que a China tem uma boa imagem no Ocidente?
Penso que o problema não é a imagem ser boa ou má, mas sim, principalmente durante os últimos três ou quatro anos, a perceção da China ter que ver mais com o governo chinês. O sucesso económico é mais atribuído ao governo e à sua política do que a outros fatores. Agora, o governo chinês não é a China. Em relação à imagem da China, penso que há falta de conhecimento sobre como as pessoas realmente vivem e trabalham no país. Nestes últimos dois, três anos da pandemia, a China esteve desligada do mundo e este tipo de desligamento é verdadeiramente problemático porque pode criar uma perceção estereotipada do que é a China. O país verdadeiro é muito mais diversificado. Por exemplo, consegue-se encontrar muitas semelhanças a nível individual entre os chineses e os portugueses ou os espanhóis... Penso que essa é uma das coisas em que a comunicação social se deveria concentrar, voltar novamente o foco para o povo chinês em vez de dedicar toda a atenção a Xi Jinping [risos].

leonidio.ferreira@dn.pt

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